Esse texto será distinto dos demais. Deve inaugurar, introduzir ou contextualizar uma série de textos ou cenas que se pretendem vir a seguir.
Fui parar no Ceará no começo desse mês. Antes do trabalho, muito justo um tempo para um descanso. Jericoacoara, terra dos ventos, vila de pescadores e... de kite e windsurf, restaurantes caros com cara simplicidade e pousadas que buscam reforçar o estilo de simplicidade e rusticidade praiana.
Para ir toma-se um transporte de Fortaleza pra Jijoca. Ônibus, vans, micro-ônibus. A cidade tem toda a simplicidade do interior do nordeste. A maior parte das casas é pequena, pintadas a uma só cor, nunca iguais dentre as vizinhas. A prefeitura pouco difere das outras casas, é maior, mas tem seu pequeno quintal com coqueiros. O hospital ou serviço de saúde local é igualmente de teto baixo, pintura pastel desgastada, diversas rachaduras nas paredes, algumas com remendos sem tintas. Com um grande contraste, ao lado deste equipamento social, o poder público se expressa no prédio da Câmara de Vereadores. É o único com generoso pé-direito, igualmente quadrangular como todas as outras construções, pintura nova. Nova também são as letras pintadas que identificam o edifício, serviço malfeito, cujas cores despegaram um pouco e mancharam a parede abaixo.
O acesso à vila só é possível sobre veículos com tração nas quatro rodas e os transportes coletivos são caminhões e caminhonetes adaptados. As caçambas são equipadas com banquinhos de madeira com algum estofamento. De madeira também são as coberturas, cujo aperto dos parafusos não são suficientes para impedir que balancem fortemente aos trancos dos buracos, areias e dunas.
A estrada de terra atravessa vilarejos de casas baixas, mal construídas, algumas abandonadas inacabadas e vegetação de arbustos, tingidos de areia vermelha, ora meio secos ora de copas verdes vívidas. Repentinamente a estrada de terra vermelha dá lugar à areia branca, em quantidade cada vez maior. Quando percebemos saímos do meio da vegetação para trafegar entre enormes morros de areias ondulantes, móveis, mutáveis.
A paisagem muitas vezes lembra um deserto, mas tem beleza indescritível. Beleza que se repete e se aprofunda nos passeios realizados nos dias subseqüentes.
O cotidiano da antiga vila de pescadores de Jericoacoara é surpreendente. A partir de umas 9:00 legiões de bugues se movimentam para levar os turistas para passeios a leste e a oeste da vila. O almoço já acontece no meio da tarde. No final da tarde acontecem promissões para admirar o espetacular pôr-do-sol a partir da Duna do Pôr-do-sol ou da Pedra Furada. No começo da noite a vila está marasmática. Todos dormindo? Não! Eis que pelas 22:00 os restaurantes estão lotados... E então... existem baladas, casas de música eletrônica, forró e reggae. Movimento? Só lá pelas 2:00 da manhã!Onde foram parar aqueles pescadores de vida pacata que dormem ao crepúsculo e acordam no começo da madrugada para avançar sobre o mar?
Alguns encontros foram marcantes, incomodaram e vão mobilizar algumas histórias. A visita à Velha Tatajuba enterrada pelas dunas cuja história é contada (ou seria vendida) pela anciã Dona Delmira. Aguardando o sol cair, em meio a muitos turistas e chicotes de vento com areia uma amiga de tempos antigos! Encontro inesperadamente inusitado. Eis que essa conta uma conversa com alguns estrangeiros recém-conhecidos. Falavam sobre as belezas do lugar e comentava-se que havia muitos turistas e moradores estrangeiros por ali. Ao que uma das pessoas interpela-a: “É! Aqui tem mais estrangeiro que brasileiro! Então a gringa aqui é você!” Exageros dele a parte, ela brilhantemente responde: “Devagar aí! Isso aqui é NOSSO!”.
E aí caiu a ficha! Paulistas, cariocas e estrangeiros eram os donos de tudo o que acontece em Jericoacoara. O esporte mais praticado na região o é por estrangeiros, uma aula custa mais de R$150,00. Um jantar pode variar de 20 a 60 ou até R$100,00. A estadia nas pousadas por uma média que R$80,00 por dia por pessoa.
E os pescadores e suas famílias? Trocaram a dependência dos compradores de sua pesca pelos empregos, muitas vezes não formais, subordinados a pessoas estranhas à sua terra e aos seus costumes e frequentemente até mesmo aos seus idiomas. Faxineiras, bugueiros, vendedores de artesanato (diga-se de passagem, obras que poderiam ser vendidas por uma centena de reais em São Paulo mal se consegue que sejam compradas por uma dezena), de coco, capturadores de cavalos-marinheiros para exibição, remadores de balsas, vigias.A condição de vida de muitas famílias melhorou? É quase indiscutível. Em compensação a desigualdade social vai a níveis estratosféricos, uma faixa de marginalidade cresce, meninos pedem dinheiro nos lugares onde os bugues precisam parar ou reduzir a velocidade para passar. E quem manda, no fim, são os gringos.
É o neocolonialismo... não se faz com exércitos, se faz com aculturação e submissão social e financeira.
Realmente Bruno, uma visão no minimo inusitada de Jeri, mas que nao conhece disfarçar que a beleza mais que natural e linda, foi descoberta pelo turismo e todas as suas contradições. Infelizmente esse pedacinho belo não está longe das inteperes do nosso capitalismo selvagem! Mas uma pergunta nao quer calar, vcs foram na padaria que abre depois da 00:00??? Hummmm, deu até agua na boca. Bjos!!!
ResponderExcluirPow... especificamente nessa padaria não, mas acho que até sei de qual você tá falando. Preferimos os sorvetes e as tapiocas. Além de caipirinhas, claro! :-P
ResponderExcluirPois é... talvez nem as belas e imprevisíveis dunas sejam capaz de segurar a fúria do capital tresloucado!