26.6.16

Amor aquarela

Certo homem levanta-se todo dia no mesmo horário. Lá por aquela hora em que o sol está nascendo nas épocas de equinócio. O despertador toca, leniente com aquele corpo que custa a despertar de um sono torporoso e sem sonhos. Repleto de autocomiseração, arrasta-se para o banheiro e procedimentalmente lava o rosto, escova os dentes e diz ao espelho que hoje será um dia melhor (segundo a receita de um livro de auto-ajuda "para vencedores"). Na cozinha engole um pão com um café preto, desjejum apressado e cheio de culpa. Não pode atrasar no trabalho e deveria comer melhor... o médico diz que come muito carboidrato e que café sobe a pressão. Mas o tempo urge...
Apressado, parte para um trabalho. Um trabalho sem graça. Não é muito feliz nele, não. É meio tedioso, meio irritante, mas precisa de um meio de vida... está temporariamente nele há anos... um dia muda de emprego pra algo que goste (Será que sabe do que gosta?). Está construindo seu caminho. Procura convencer-se (se repetir muito, quem sabe torne-se verdade) disso no caminho de ida ao início do expediente, entre atropelos e xingos de um trânsito caótico.
O dia passa, sem sobressaltos. Mal é possível lembrar no que ele trabalha, é praticamente irrelevante... qualquer coisa massificadora, mais um serviço automático qualquer que lhe obtusa o pensamento...
O caminho de volta costuma ser marcado por audaciosas manobras em um trânsito do inferno enviado apenas para transtornar ainda mais seu dia tenebroso. Chega em casa, atira as coisas em um canto da sala, serve-se uma dose dupla de whisky on the rocks, afinal, depois de um dia desse, é mais do que merecido! Trabalha pra quê afinal? Na TV, alguma comédia pastelão ou algum filme de ação.
Um dia repete-se após o outro, quase como se o anterior não tivesse existido ou como se o seguinte não estivesse porvir ou já estivesse tão determinado que não é possível (ou relevante) pensar a respeito dele. Ah sim! Eventualmente, uma vez por ano, consegue férias. Qualquer viagem de 15 dias justificam o sacrifício do ano anterior...
Seria, sinceramente, uma vida que não valeria em nada ser contada...

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Então, apareceu branco. Como uma cor qualquer, cruzou sua vida em um breve momento em que desviou-se de sua rotina para um programa mundano (desses provocados por algum incidente ou amigo insistente). Branco apareceu, lhe falou não mais que meia dúzia de palavras e fez uma pequena marca em sua mão. Uma curiosa marca que prendia sua atenção e seu olhar.
Todo dia olhava para ela! Todo dia pensava nela. Então, enamorou-se de branco. Para todo lugar que ia levava-a junto. A marca expandiu-se, ocupou seu braço e logo, em mais um par de dias, todo o seu corpo. E seguiu avançando... logo tudo tinha que ser branco... as roupas, depois a casa. Pouco a pouco, tudo ficou branco. Amava branco e branco ocupou toda a sua vida. Seus olhos foram cobertos por um véu branco. Uma vida feliz e branca! Como se não pudesse mais existir sem isso.
Mas as cores são lépidas e faceiras! Branco pulou! Cansou até de si mesmo! E começou a escorrer, escorrer pelo ralo, pelas frestas, por qualquer pequeno vão pelo qual pudesse passar. O homem foi invadido por pleno desespero. A todo custo procurou conter o movimento de branco. Mas o movimento de uma cor não é contível. Construiu barricadas. Comprou tinta para ele mesmo pintar tudo de branco, mas essa cor de seu pincel não passava de uma sombra, uma emulação, da cor que lhe escapava por entre os dedos, literalmente.
Em um ato intempestuoso tentou conter a cor em um balde. Mas, em seu nervosismo, escorregou e virou o recipiente que continha os últimos rastros de branco de seu corpo. Via agora, sempre e em todo lugar, os vultos brancos de seu véu, agudizando sua angústia. Branco estava, mas não estava...
No auge da impotência, o homem perde o movimento e começa a definhar. Definha, seca, murcha, não há nada que valha a pena sem sua amada cor, que o abandona, cruel, mas mantém-se em sua vista.
Qualquer vontade de movimento vai abandonando-o. Convertendo-se em uma casca seca e decrépita.
Junto às portas de um suspiro final, da total falta de vontade, converte sua paixão em raiva. E sobre a raiva firma novamente seus joelhos e cotovelos e ergue-se em um novo corpo. Reencontra-se com o espelho de seu banheiro que lhe confidencia "amanhã talvez seja um dia melhor", "branco só atrapalhou sua vida tão bem engendrada".
A rotina o ocupa novamente e as matizes brancas de seu olhar vão se anuviando. A vida toma seu rumo novamente. Um dia após o outro. Sem dia seguinte, sem dia anterior. O véu branco já repousa em um bolso, que vez por outra aperta em uma lembrança ou saudade dolorosas.

Ocorre que, outro dia, uma serelepe e pulante "criança" passa correndo por ele quase derrubando-o. Ao perceber seu descuido ela corre para longe. Ele a pragueja, mas ela retorna tão rapidamente quanto foi e com uma flor. Uma flor azul. E que danada! Olhou-o com aqueles olhos-de-bem-querer, deixou a flor e se foi. Simplesmente se foi e deixou aquela flor azul ali pulsando. Um coração azul que batia de maneira tênue e constante. Não poderia simplesmente jogá-la fora, ainda que invasora de seu ritual cotidiano tão bem controlado.
Cuidadosamente colocou a flor azul em um vaso de vidro com água e os depositou sobre a mesa. Todo dia ao acordar conversava com a flor. Toda noite trocava-lhe a água cansada do dia por água fresca. E ela tinha mais a mostrar de sua exuberância! Uma e outra pétala foram se abrindo, compondo algo realmente maravilhoso. A cada dia sua pulsação era mais forte!
Não sabe quando começou, ou como isso se deu, mas quando percebeu seus braços já estavam azuis! Azuis e quentes e vivos e fortes! Deixou-se arrebatar! E logo sentiu-se todo azul! Cada canto obscuro de sua existência estava tomado por essa cor forte e pulsante.
E que êxtase no dia em que uma pequena pétala se despegou do conjunto. Claro! Era um presente! Uma dádiva! Recolheu-a com todo o carinho e fez dela um broche. E passava o dia inteiro olhando para aquela pequena pétala. Mas alguns dias depois outra caiu, também a recolheu cuidadosamente. E no dia seguinte outra. E mais outra...
Quando precisou de uma caixinha para guardar aquelas gotas celestes, percebeu que ela o estava deixando! Ela estava partindo! Ela também não! O lenço branco apertou-lhe a mão direita. Tentou trocar de água mais vezes, tentou borrifar, tentou mudar de lugar, alterar a incidência do sol... nada disso afetou o inexorável processo de despetalamento. Recolhia cada partezinha de sua paixão e não a deixava partir, guardando-as, uma a uma em uma pequena caixinha, talvez uma de uma antiga aliança. E ali depositou todo seu querer. Não foi trabalhar, ficou sentado vendo-a despedaçar-se. Assistindo, em profunda tristeza, sua partida.
Quando a última pétala caiu tentou colocar-se junto com ela, dentro da caixa. Mas na impossibilidade de unir-se ao azul, simplesmente escorregou pelo chão... Dias passou deitado olhando para aquele sagrado recipiente de inúteis esperanças anis.
Dizem que um amigo o encontrou em deplorável estado. Seu corpo macilento e inerte jazia, já fétido, no chão. A muito custo ele foi levantado, lhe deram banho e o fizeram comer. O véu e a caixa não saíram de perto nem um segundo. Com algum esforço o homem pôs-se  caminhar novamente.
E, agora, de maneira alguma, deixaria qualquer outra ardilosa cor se aproximar. Andava sem tirar as mãos do bolso, pois quando alguma maledicente cor vinha cortejar-lhe os sentidos sentia apertar o véu branco em uma mão e a caixinha de azul pesar na outra.

Retomou sua pacata e rotineira vida de antigamente. Retomar, é uma maneira genérica de dizer e pouco condizente com a realidade, pois algo ficou marcado em seu ser, em seu pensamento. Não sabia bem se seria uma memória ou se seria um ressentimento, um passado ou uma tristeza perene. O fato é que nada do que aconteceu realmente o deixou, mas não conseguia enxergar ou entender por onde isso passava. Alguma inquietude passou a ser permanente, ainda que frequentemente obtusada pela pressão da rotina. E tornou-se ainda mais produtivo no trabalho e menos no pensamento (ou no sentimento).
Por mais que não quisesse, branco e azul continuaram povoando sua cama, seu café da manhã, seu banho e seu tênis. Estavam ali. E seu coração endureceu. Endurecer é uma palavra boa para descrever isso. Nada passa, nada entra, mas também nada sai. Mantém-se integramente protegido, mas pode simplesmente estourar em migalhas se o peso da existência for maior que sua dureza. E assim ficou muito tempo.

Só que a vida tem suas sordidezas e não é possível passar incólume a tudo. As modificações podem ir acontecendo, mesmo que lentamente. Ele mal percebia, mas amarelo estava rondando-o. Por muito tempo o fez com alguma distância. Pouco a pouco aproximou-se, tocou-o, acariciou-o. Talvez nem este mesmo percebesse seu próprio movimento e suas próprias intenções, quanto mais ele. O fato é que em algum tempo estavam se acompanhando, nas luzes e nas ideias, nos caminhos e nos silêncios.
E um cuidado assim, tão sensível e sutil, abranda. E assim ele foi aquecendo e a casca foi derretendo. Uma suave mudança, imperceptível na passagem dos minutos, mas de inexorável era volumosa na passagem dos meses. O toque vinha em múltiplas direções, de diversas fontes, mas vinha sempre.
Assim amarelo amoleceu-o e penetrou sua vontade, abriu pequenas fissuras. Uma vontade que não é solitária já é outra, de outra coisa, é um desejo de vida cada minuto mais poderoso. E o homem firmou seus pés e ergueu seu tórax. E amarelo estava com ele nessa caminhada. E ficou forte! E contava com amarelo para tudo e qualquer coisa. E já sentia que não seria se não tivesse amarelo.
Só que "felizes para sempre" não é algo da vida real e concreta. Na montanha russa da existência algumas coisas escapam do carrinho naquela curva a alata velocidade e, parece, que só se sobe para poder desabar em mais alta velocidade ainda. Bem... numa esquina da vida ele seguiu, mas amarelo dobrou. E quando percebeu-se aquele o dia claro e sem nuvens foi tomado por uma longa tempestade de muitos dias. Amarelo foi-se e agora seu espírito era só lágrimas e relâmpagos, ventos raivosos e correntezas de tristeza.
E toda aquela água pesou em seu corpo, fraquejou suas coxas e panturrilhas, dobrou seus joelhos, curvou suas costas. E as costas não sustentavam mais aquele mundo que desabava, nem seus braços poderiam mais suportar, então foi ao chão.
Ali, jogado ao solo, foi confundindo-se com o próprio chão, deixando de ser si. Escorrendo, cada vez mais flácido, em uma musculatura sem tesão.
E quando já quase não havia mais ser a que se apegar, estourou um relâmpago. Nessa repentina e estrondosa energia trovoou um grito poderoso de desespero. Suas fibras tencionaram-se uma vez mais, eletrocutadas. Uma tensão quase explosiva! Suficientemente forte para que se erguesse e se rasgasse em dor e tristeza. Sob sua pele, da profundeza de sua pele, emergiu aquele líquido denso, rubro. Vermelhalmente escorreu, diluído em lágrima, sobre um corpo em farrapos vestido de migalhas. Sentiu, por um instante, sentiu, aquele dedo quente suavemente percorria seu corpo de cima para baixo, escutou a gota-dedo pingando. E quando permitiu-se olhar, viu. Sim, o que sempre esteve ali, tatuado. Branco fazia parte de seu corpo. Azul fazia parte de seu corpo. Amarelo ainda estava marcado. E em sangue permitiam-se carregar-se de um ponto a outro, diluíam-se e misturavam em tons alaranjados, esverdeados. Espectros multicoloridos compunham seu corpo. Irmanavam-se, amavam-se e o constituíam. Presenças que ainda eram, ainda que distintamente constituídas, e faziam parte da existência de si mesmo. Bastava que ele mesmo seguisse re-existindo tais quais todas aquelas cores que passavam (e eternamente estariam, ainda que não mais ficassem), pois tudo é impermanente.
Assim ergueu-se.
E não foi feliz para sempre.
Mas entendeu que eternamente resistiria. Resistiriam em si. E então, só então, amou.
Jessica Damasceno
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