15.9.15

As durezas dos chãos e das flores II

(1ªparte)

Entre pinga, graxa, caixa e marquise viveu por uns dois anos. Não que fizesse essa crítica sobre si mesmo, mas havia algo hedônico em viver exclusivamente um dia de cada vez. O dia seguinte não existia e poderia realmente não existir. O dia anterior, só tristeza e dor.
Um par de sapatos, um gole de cachaça. Um trocado, uma nova garrafa. Um prato de arroz e feijão baratos ocasionalmente. Os vermes do chão, da água, da louça mal lavada, garantiam algum aporte proteico... suficiente só para despertar um dia de cada vez.
Mas você que não viesse com qualquer oferta idiota! Era homem limpo! Não usava mais drogas. Só o corote mesmo... fazer o quê! Mas sai pra lá, seu vagabundo com essa sua pedra de crack!
Sai pra lá seu viado, com essa sua sem-vergonhice! O negócio mesmo, era pegar o dinheiro dos dois últimos sapatos e ir na rua de cima. Lá tinha puta da boa. Dessas que enchem a mão e que cobram nada! Para ele, naquela situação, uma gozada por semana era suficiente, mas aproveitava cada minuto!
Mas foi aí, quando já não tinha mais sujeira nova que experimentar. Quando já era amigo da maior parte dos calçamentos do centro da cidade, quando já tinha trocado socos com metade dos seus companheiros de rua (abusados, quem pensavam que eram pra questionar o quanto ele era homem?), que ela apareceu.
Todo dia passava justo ali por perto de onde estacionava seu caixote. Insinuava-se entre as barracas de camelô, ancas largas, seios fartos em um decote que engolia seu olhar. Depois de desfilar, indiscretamente interromper as conversas masculinas, receber, como se não estivesse ouvindo, cantadas de baixo calão e assobios evocativos se postava atrás de um balcão de frutas. Cada fruta era uma sedução... rebolava o quadril para vender a melancia, apertava os peitos para exibir a maçã, parecia sacar o cacho de uva de dentro do decote, para pegar um cacho de bananas debruçava-se sobre o balcão a ponto em que a blusinha era totalmente dispensável...
Vê-la todo dia enlouqueceu seu juízo!
Largou o corote...
Maneira de dizer...
Bem dizer, bebia um trago sim outro não, para amaciar o chão sob a marquise...
Arrumou uma roupa limpa.
Ergueu o tronco, erigiu a coluna.
Passou a calçar pares de sapatos, como se sua vida dependesse disso! E dependia...
Acordava sob a marquise junto com o nascer do sol. A cada dia dava um jeito para lavar-se, aparar a barba, pentear o cabelo justo ao crânio, partido no meio, passar uma colônia barata.
- Vai dar o cú! - gritava algum companheiro de rua.
- Viado!  - gritava outro.
E os ignorava. Melhor, simplesmente não os escutava racionalmente.
Conseguiu juntar um dinheiro. Muito mais do que houvera conseguido nos últimos anos!
Então comprou a ela o mais bonito buquê de flores que encontrou naquelas paragens. E gastou todo o pouco dinheiro que tinha. Ela estava fechando a barraca quando chegou a seu lado. Não sabia o que fazer ou o que dizer. Todas as mulheres com as quais houvera estado nos últimos anos tinha sido compradas! E de forma meio gutural, atrapalhada e desconexa emitiu alguma cantada de mau gostou e entregou-lhe as flores.
- De você não quero nada! Sai daqui!
Aquilo doeu. Mais, rompeu os tímpanos. Mais, quebrou algo dentro de si!
Saiu dali abatido, carregando o buquê. Sua mão era capaz, no máximo, da contração de repouso, na qual os nódulos dos ramos das flores se apoiavam para não irem ao chão... ainda que suas pétalas arrastassem por ele...
Sem conseguir pensar em mais nada, subiu no viaduto e se jogou de cima.
Malditos médicos! Trouxeram-no de volta, miserável, infeliz e manco!
A caixa da graxa, abadonada a um canto, foi destruída. Sobrou o corote. E o corote depois do corote. E o seguinte depois deste... e o outro ao amanhecer, e mais um ao anoitecer, além do para dormir. Adoeceu. Foi internado e voltou. Adoeceu, foi internado e voltou. Adoeceu, foi internado e voltou... e voltou... e voltou... e voltou... A sobriedade era um mal de amor! E cada ajuda, cada recuperação era somente para preceder a recaída, nas memórias daqueles seios fartos que estavam lá... sempre,... para serem apreciados, no fundo de cada garrafa!
Mas o tempo é o tempo... e o cuidado é o cuidado... e melhorou... cada dia um bocadinho... E a cada bocadinho que melhorava lembrava da sua mãe, do seu padrasto, não lembrava do seu pai, lembrava do seu amor e do seu não-amor.
Até que um dia ela passou por ali. Formosa, linda, cheirosa. Em um par de saltos altos, delicioso decote, uma barriguinha de fora ladeada por torneados braços... um dos quais dado a um homem... para o qual se virava, de tempos em tempos, para um apaixonado beijo. E lembrou que seu único companheiro naquela vida era o corote. E a ele foi encontrar. De novo... e de novo e de novo...

De repente já estava na lama e na merda de novo...cada dia menos lama e mais merda... por pura falta de água...
E ali decidiu que não era mais possível... que não suportava mais. Até tentaram dissuadi-lo. Mas já estava resoluto.
Certa mais manhã desperta, com hálito um pouco sulfuroso... recebeu os primeiros caminhantes na rua. Virou sua última garrafa de cachaça e caiu, estrebuchado, no meio da multidão. Um pedaço de carne e de nada, tremendo e parado, babando, mas já seco de vida.
E nunca mais sua mãe teve notícia dele e nunca mais ninguém lembrou dele e naquelas marquises não sobraram vestígios de si...