18.7.17

Linhas de vida e de morte

Ariadne e Teseu, Nicolo Bambini, 1651-1739
Ariadne recebeu esse nome porque uma vez sua mãe ouviu uma história... uma história qualquer, não lembra exatamente qual. Algo sobre ela costurar e salvar um herói. Talvez tivesse aí um misto de desejo e esperança... Esperança? Na melhor das hipóteses, teria alguma dignidade costurando para alguém... Sua mãe não poderia desejar nada melhor do que isso ou imaginar que ela poderia ir mais longe, ter melhor sorte...
Aquele seu marido era um filho da puta! Suas gravidezes tinham sido estupros, do começo ao final. E assim nasceu Ariadne, em meio a urros de dores. Múltiplos lugares existenciais doíam a cada contração e carne rasgada.
Assim, ela nasceu apanhando! Já apanhava na barriga. Claro que da barriga não queria sair e ao despertar para o mundo-cão já apanhou do médico, para ver se estava viva, para que chorasse. Chorou daquela vez e mais algumas outras vezes quando ainda era criança. Depois não mais. Quanta fragilidade se expõe em uma lágrima?
Quando tinha uns nove anos chorou de novo. Foi quando percebeu que se continuasse vivendo ali não conseguiria viver. Sim, aos nove anos. Seu corpo já estava muito marcado de cicatrizes, não tinha mais criança ali, só um pequeno ser pré-púbere com ódio do seu mundo. Era preciso ir para outros. Lá longe, no centro, tinham pequenos seres como ela que viviam livres, pelas ruas. Pegou uma mochila com algumas roupas, em uma noite, e foi. Chorou enquanto pulava a janela, corria pelo quintal, escalava o muro por um lado e descia pelo outro. Pensava em sua mãe pela manhã, ao encontrar sua cama vazia.
Sua primeira noite, fria, teria sido totalmente solitária, não fosse por um cachorro. O pequeno cão afeiçoou-se a ela e dormiram juntos, abraçados, esquentando-se. Muito mais carinho do que estava habituada.
Lá no centro encontrou seu bando. E pelos cantos escuros da cidade iam sobrevivendo, mangueando, realizando pequenos furtos. Fugindo da polícia, do conselho tutelar, de incheridos que queriam "melhorar" suas vidas. Não havia melhor do que aquilo para eles. Por alguns anos, Ariadne sumiu através de frestas e buracos nos muros. Via, vez por outra, algum conhecido à distância, até mesmo sua mãe, mas ela sempre via antes e sumia em algum canto escuro.
Até que um dia ela descobriu que estava grande demais para passar entre dois muros. E foi, pela primeira vez, para a Fundação Casa. Mentiu os contatos de sua família. Quando saiu, depois de 2 anos, voltou pra rua. Tinha perdido um pouco o traquejo. Também tinha perdido seu grupo. Também tinha perdido seus animais. Quando foi presa, dormia entre 4, três cachorros e um gato. Ninguém ousava chegar perto. Sua primeira noite foi solitária. Já tinha seus ares de mulher... e não passou a madrugada ilesa... E a aurora veio com ódio e sangue.
Voltou a ter companhia de seus animais. Adotou um ou outro cachorro, depois outro.... Mangueava para ela e para seus amigos e, sempre, eles comiam primeiro. O centro já não tinha tantos adolescentes. Diziam que a polícia estava fazendo o rapa... era preciso estar escondido o tempo todo. Usou de todas artimanhas para sobreviver, mas ainda não se entendia com seu corpo. Acabou pega de novo. Dessa vez para um abrigo. Onde ficou por um tempo. Eram aquelas paredes. E aquelas pessoas. E aquelas ordens todas. Nada daquilo fazia sentido. E nada daquilo penetrava sua pele, seus instintos, seus ouvidos. E na cama estava sozinha. Fugiu.
Pouca gente, hoje, percebe que ela ainda está saindo da adolescência hormonal. Na verdade, pouca gente percebe que ela existe... quem percebe, vê uma mulher.

Um dia, uma mulher estava na frente de uma igreja. Igreja grande. Muita gente passando. Dia de comércio movimentado. Como quase todos os dias por ali. Tinha dois cachorros. Em uma bolsa um gato cinza, na roupa um rato branco. No chão algumas roupas e outra bolsa, e alguma comida em uma marmita. Por algum motivo aquela mulher estava batendo nos cachorros. Batia com força. Cachorros vira-latas fortes. Um esganiçou, o que chamou a atenção indignada de uma transeunte qualquer. Que não era bem qualquer transeunte.
No dia seguinte a tal transeunte voltou. A mulher estava deitada, cercada por seus animais. A tal transeunte apresentou-se como sendo de uma associação protetora dos animais e perguntou de quem eram aqueles pobres famintos (os bichos). A mulher mandou a protetora à merda. Esta insistiu e foi rechaçada com violência. O que a mulher não viu é que duas viaturas da Guarda Municipal estavam protegendo aquela abordagem. Quatro guardas chegaram, fizeram a mulher levantar para passar por revista. Enquanto estava tendo seus pertences e seu corpo revistado, a mulher apenas viu, de canto de olho, a tal protetora colocando seus animais em uma van... os cachorros e o gato. Nesse momento o rato mordeu a mão de um guarda, que o pegou pelo corpo com muita força e o atirou longe. Teria sobrevivido? A mulher reagiu, gritou, gritou mais alto e começou a bater naqueles quatro homens. Ameaçou correr, mas recebeu um chute na perna que a derrubou. Ali mesmo recebeu outros chutes. Dali, com a boca sangrando, viu seu companheiros indo embora. Dali viu a protetora com olhar de medo para ela e para os guardas indo embora. Viu os guardas jogando seu pertences - sua bolsa, um retrato velho, o RG, a receita do anticoncepcional, um par de bijuterias e um perfume barato - no lixo e se afastando devagar, rindo. Dali também viu o lixeiro levando tudo para algum lugar que não existe. E viu a luz do dia acabar.
Ali, Ariadne, com o sangue escorrendo da boca para a calçada de pedras portuguesas, na frente da igreja, chorou de novo.
E nunca mais vimos Ariadne.

15.7.17

Carlos se fudeu

Carlos se fudeu.
Veio da perifa. Lá onde Judas perdeu as meias... porque as botas já tinham ficado no último lugar em que as pessoas ainda tinham algum tipo de direito. Negro. Porque isso ainda coloca uma âncora no pé.
De um casebre, que está com alguma alvenaria só há poucos anos, talvez uma década. Até hoje no osso... aquele acabamento que não foi possível comprar porque acabava com o orçamento familiar.
E que família. Vários irmãos. Uns tantos doentes. Os quartos eram 2, três com a sala. Casinha de cubículos de lego ocupada por vários bonequinhos.
Carlos de fudeu.
Pinga, cocaína e crack.
O tráfico dá muito mais futuro que a rotina semiescrava de trabalho para algum senhorio branco. Não nos enganemos. Não há futuro, por um lado ou outro. E não há família "Doriana" na miséria. E é aí que a rua alberga.
Na real? As portas estão fechadas. Umas brechas às vezes aparecem, mas a negritude já acaba com metade dessas. A situação fecha o resto. Ainda assim segue-se na luta. "Sou brasileiro e não desisto nunca", a Esperança, o último mal da Caixa de Pandora.
Não há futuro. Não há porque cuidar-se. Real? A pinga causa, mas também cura a dor. E se a dor é uma permanente certeza cotidiana... A vida de Carlos valia menos, não há dúvida. A vida de Carlos mal valia algum esforço, nem dele mesmo, nem da família. A vida de Carlos talvez valesse um cigarro soltinho, um corote ou uma pedra (das de 5...). Certamente não mais do que isso.
Carlos ainda teve quem tentasse no mínimo cuidar de algum resquício de dignidade, do que poderia ser uma fagulha de vida que se produzia naquele corpo. Foi pouco...
Carlos se fudeu.
Cerca de 40kg perdidos depois, morreu em casa, num quarto pequeno e escuro, mal acabado. Mas não morreu sozinho na calçada... ali, naqueles últimos minutos reconciliou-se com a família, com o colchão, com o teto, com a vida, com o afeto. Naqueles últimos minutos recebeu e deu, descobriu um pouco do que a vida poderia dar.
Não romantizemos... claro que Carlos foi um babaca também. A vida tem muitos tons de cor... sofreu, mas também revidou. Evidentemente, eventualmente, de modo execrável à sociedade e, talvez, à própria vida.
Já nos seus últimos dias, ao vistá-lo, tive a oportunidade de presenciar uma fundamental transformação. Aquele corpo esquelético encontrou-se com aquele seu afeto e não soube dar palavras às suas emoções. Antes do fim, viu amor e carinho. Antes de ir, como um pai, ainda coube-lhe dizer: "cuidado na volta, a pista está molhada".
Carlos não morreu de câncer. Carlos morreu de pobreza, negligência, preconceito, racismo. Morreu quando ainda estava vivo.


Ah... claro... só não esqueçamos que a morte também é parte da vida e nela também se produz vida... e quem poderia entender a vida que Carlos produziu?