12.4.13

Feerismo

Depois de séculos sem escrever, vai aí... reaquecendo as baterias...
Claro que rolou uma putaria do servidor que excluiu meu post. Gábi veio me salvar, tinha impresso o micro-conto assim que eu tinha postado. Vai de novo transcrito e levemente revisado.

A reflexão abaixo escrevi quando comecei a escrever o conto, alguns vários meses atrás. Resolvi mantê-la, ainda que a breve história tenha mudado radicalmente a cada suado parágrafo...

A vida vai se construindo em momentos. Quanto mais amor e alegria atravessando-os, mais intensidade e potência criativa para a vida. Isso é o tempo todo, no cotidiano. Mas existem alguns momentos que são particularmente mais impactantes. Alguns atribuiriam isso a certo alinhamento astral planetário, outros ao destino ou a caprichos de algum deus animador de títeres. Parece-me mais provável que as disposições construídas e presentes em algum momento levem a estes acontecimentos, a estes momentos de explosão de vida. Só os dispostos podem vibrar a esse acontecimento... os demais passam incólumes, como um cego diante de uma linda mulher nua.

Um homem caminhava pelo mundo. Caminhava sem ter muito destino. A cada lugar encontrava e conhecia seres, os quais o levavam a outros lugares e assim por diante. Suas relações eram rápidas, fugazes. Certa vez alguém lhe disse que tinha medo de estar com as pessoas! Mas que absurdo! O que ele mais queria era conhecê-las, como poderia dizer que tinha medo? Isso ele me confessou em carta, recentemente.
Por aqui, passou rapidamente... ficou apenas uns meses. De maneira voraz invadiu nossas vidas. Dizia que tinha vindo para estudar, matriculou-se em algumas disciplinas na Universidade, alugou um quartinho em uma pousada. Raramente contava sobre sua vida, a custo consegui descobrir que a família estava a uns 500 quilômetros de distância, os quais raramente via. Na segunda semana de aula conseguiu convencer-nos de sair para tomar uma cerveja. O grupo ainda se conhecia pouco, mas de bar em bar criou laços importantes de amizade. Fiquei sabendo que toda semana ele fazia uma visita a um ou outro. Vinha em casa com certa frequência, apaixonamo-nos por ele. Sua fala mansa e extrovertida, seus olhos cinzas esverdeados, seu cabelo cacheado e comprido.
Não. Não me perguntem mais do que isso.
Reparei que ele costumava lembrar o que as pessoas tinham dito ou feito de uma semana para outra e que sempre conversava olhando nos olhos. Seria uma estratégia para invadir-nos? Não sei, consciente ou não, funcionava. Um semestre foi o suficiente para que o grupo tivesse criado profunda afeição por ele e entre si. Como algumas pessoas gostam de separar, podemos dizer que várias pessoas viram-se apaixonadas por ele como amigo e outras tantas flagraram-se arrebatadas de paixão pelo homem, mas vários de nós acabamos mesmo apaixonados uns pelos outros, ainda que fosse difícil admitir.
Um dia, quem sabe, conte em mais detalhes as histórias que vivemos naquela época, mas agora queria escrever sobre o momento em que ele nos deixou. Escrevo porque sinto saudades. Sei que ele está bem, ainda que a vida esteja sendo mais difícil, é certo que também está mais feliz. Sinto sua falta.
O semestre acabou e ele nos convidou para uma viagem. Merecido descanso de 10 dias. Passeio cultural e histórico. Viajamos nós três, pegamos o mesmo quarto na pousada. Tudo foi maravilhoso. Ao longo do dia andávamos, muito. De história em história fomos conhecendo a cultura local, seus costumes e suas delícias. Alguns doces fantásticos! E o prato típico então? Comemos todas as suas variações! O romance estava no ar e a felicidade crescia a cada dia.
No final do dia, depois das caminhadas e comilanças voltávamos pra pousada. Um momento de descanso. Calmamente cada um cuidava de suas coisas, enquanto os outros tomavam banho e se arrumavam para a noite. Já no terceiro dia ela comprou um caderno e vários lápis coloridos. Desenhos foram brotando, descompromissadamente. Ela desenhava com graça e tranquilidade e parecia-me ainda mais bela. Sorria enquanto pintava um desenho mais sóbrio ou outro mais alegre. Não sei se a viagem ou o romance a inspiravam, aquilo tudo simplesmente fluía por seus dedos. O corpo estava cansado, mas uma disposição jovial a fazia pular entre as páginas rabiscando livremente.
Eu também estive em uma alegria deliciosa que me fazia saltar de um canto a outro, em uma prontidão inabalável. Garçom grosseiro, ônibus errado, quarto bagunçado, nada era motivo para abalar todo esse bom humor.
Já nosso amigo amante, nesses breves momentos de calmaria punha-se a meditar. A cada dia parecia estar mais inquieto. Não que a viagem estivesse provocando isso, mas algo que nossa convivência intensa de uma quase lua-de-mel pôde desnudar sobre ele. Uma permanente agitação. E foi ficando claro que, ao voltarmos, as coisas já não seriam as mesmas. Sua inquietude era perturbadora e o colocava cada vez mais isolado em si mesmo.
Que poderia fazer? Ele estava escapando por entre nossos dedos!
Esquivou-se de qualquer aproximação que tentei fazer! Dizia que estava bem, apenas estava com a cabeça cheia de pensamentos sobre o que faria ao voltar, mas não me confirmava se partiria para outro lugar. Para tudo respondia: é possível.
Então, um dia, saímos cedo para mais um passeio. As primeiras horas do dia anunciavam calor em uma manhã ensolarada. Pegamos um trem para a cidade vizinha. O clima mudou radicalmente, nuvens cobriram todo o céu e uma garoa intermitente deixou o clima deveras frio. Entretanto, não haveria oportunidade para retornar ali em outro momento, o jeito era continuar e suportar as intempéries climáticas.
De um ponto turístico a outro fomos subindo um íngreme morro, a umidade tornava os paralelepípedos muito escorregadios e o vento cada vez mais frio. Tomamos um ônibus turístico para terminar a subida, ida e volta garantida em meio a uma dezena de pessoas de várias nacionalidades. 
Chegamos a ruínas seculares que guardavam o vale. Pedras enormes cuidadosamente assentadas resistiam a severidade do tempo, preservando muradas e muralhas, lembrando tempos de selvagem beligerância. O clima foi piorando conforme entrávamos nas ruínas de escadas, baixas amuradas e paredes corroídas. O vento era intenso, queria nos arrematar dali de volta ao fundo do vale? E o que impedia isso era uma mureta que mal chegava a meio metro de altura. Apesar disso, ainda tínhamos a sensação de estarmos imersos em uma nuvem espessa, impressionantemente resistente às correntes de ar, de forma que a vista alcançava apenas curta distância. 
Caminhamos de um lado a outro, chegando, finalmente, ao ponto mais alto. Ali, atravessamos um pórtico após o qual tivemos acesso a outra área aberta sobre a muralha na qual andávamos e que dava vista ao outro lado, onde era possível ver outra antiga construção em ponto ainda mais alto. As construções pareciam olhar uma para outra em meio a um tapete de árvores. Dizem, que um antigo governante da região ficava horas naquela plataforma pintando a paisagem e sua própria morada, acompanhado por um séquito inebriante de artistas animados (e sombrios, diriam alguns).
Eis que a névoa dispersou-se momentaneamente, ainda que fosse possível vê-la a apenas alguns metros de distância. Sentada em um canto estava uma moça, vestida com um macacão de flores azuis, com a cabeça envolvida por um xale vermelho com algum bordado. Com cabeça baixa, distraidamente olhava algo em seu celular, talvez fotos. Em uma lufada ela parece perceber nossa presença, ou dá importância para isso. Levanta a cabeça (talvez estivesse curiosa sobre que adentrava sua solidão), cuidadosa e vagarosamente tira o tecido da frente do rosto e o cabelo negro de sobre o olho, revelando uma íris amendoada coroando um olhar penetrante, carinhoso e interessado... Ele a mira exatamente neste momento, ambos ficam parados, flertando-se por um tempo que quase pareceu uma eternidade. O ar ficou pesado, o peso do instante fatal, do momento em que algo acontece. Com um doce sorriso ela rompe a tensão e volta-se para o aparelho novamente, mantendo o sorriso e uma conexão invisível entre aqueles olhares, constantemente, de canto, ela ainda o fita, levantando brevemente o rosto.
Conversas, piadas, histórias e fotos entre nós,  em nada diluíram aquela conectividade, ainda que a interação entre os corpos não tenha passado daquele olhar. Enfim, resolvemos descer. Já tínhamos ido na construção do outro lado. Era tempo de partir. Vamos saindo e a moça ficando. Ainda no primeiro degrau nosso companheiro pára como se pensasse em algo absolutamente abalador, finca o pé, agita os braços praguejando contra si mesmo. Ele volta e, pé-ante-pé, pára diante dela, que com um sorriso retribui o retorno. Lentamente ele se abaixa, toma-lhe a mão e olho a olho declara sua beleza."You are lovely!", foi possível ler em seus lábios, pois quase não tinha som. Ela sorri e agradece inclinando a face com uma largo sorriso e ele volta a descer as escadas... fugindo?
O que aconteceu?
Por um momento fico atônito.
O clima volta a piorar.
No caminho de volta, ele olha para traz o tempo todo. Palpo no ar algo como "quero busca-la, mas não posso" ou "não consigo". Chegando à rua pudemos ver o ônibus passando, não corremos... cansaço ou vontade de não ir embora. Pacientemente esperamos pelo próximo. Conversas soltas no ar parecem não desfazer o impacto que nosso amigo teve com aquele encontro. Parece ansioso, anda para um lado e outro, vez por outra ignora o que estamos conversando para falar daquela moça...
Então...
Ela aparece, segundos antes do ônibus. Uma fila já está formada e ela está no fim, nós no começo. Os olhares se conectam novamente. Sentamos logo nos primeiros bancos, ela acaba indo parar no fundo. Ele vira-se para trás o tempo todo. Porque não vai até ela? Parece tomado por súbita incapacidade de se mover!
A condução pára em outro ponto turístico, descem várias pessoas. Ele a vê já pela janela. Chega a levantar-se esticando os braços para ela, mas o ônibus arranca pondo-o sentado novamente.
O resto do dia é de quase completo silêncio. No trem, no retorno à cidade, fez-nos sentar no fundo e depois passear até a frente dele. "Queria ver como era o trem". Seus passos eram pesados. A noite tem tons de desolação. O dia seguinte foi viajando. Mudamos de cidade. E ele ficou absorto na paisagem vista através da janela do ônibus. Cerca de quatro horas assim...
Uma pontada de ciúmes começou a nos incomodar. Mas ele nunca tinha sido "nosso" e, na real, aquilo poderia ter acontecido a qualquer um, a qualquer tempo. Um arroubo de paixão? Não somos senhores do coração alheio... tão pouco convém tal pretensão de controle.
Chegamos à noite, um pouco cansados, mas ainda querendo passear. Fomos tomar uma cerveja e ainda assim ele pouco falou. De manhã fizemos um tour guiado, com um grupo de pessoas de vários países. Tantas histórias distraíram um pouco e trouxe riso novamente.
Após o almoço insistiu que continuássemos andando. Ele não cessava sua busca. Queria conhecer a outra margem do rio, ficar mais perto daqueles singulares pequenos barcos que ali atracavam, cheios de barris. Cedemos. Atravessamos uma bela ponte de ferro e fomos andando pelo calçadão próximo à água, olhando os barcos, as pessoas sentadas no gramado curtindo uma preguiça.
De repente ele congelou. Olhamos para trás e ele estava parado, com os olhos arregalados.
"É ela!", ele disse. "Ahn?". "Tenho certeza! Ela me cumprimentou com os olhos!"
Até aquele momento eu ainda não tinha entendido exatamente o que tinha acontecido. Só podia ser um encantamento algo tão estuporoso, tão arrebatador. Não tinha como reagir àquele olhar quase desesperado dele. Com um braço acordei-o do transe, mandando-o atrás dela.
Aqueles segundos imobilizados pareceram horas. Um não saber o que fazer, uma falta de coragem, uma não medida de qual seria a reação necessária para aquela situação inusitada... e tão comum...

Ele foi! Correu até ela. Mais pela ansiedade do que pela distância ou risco dela sumir, ela tinha descido até as pedras mais próximas ao leito do rio e ali jogava migalhas de pão aos peixes e aos pássaros. Ali os dois sentaram e ficaram conversando.
Sentamos por perto para beber algo enquanto o esperávamos. Por nada no mundo interromperíamos aquele momento nem por um segundo. Não era possível escutar o que diziam, nem nunca fiquei sabendo. Depois de cerca de uma hora levantaram e pegaram um teleférico para a parte alta da cidade. Nós ficamos ali mais um pouco e voltamos à nossa hospedaria. Ele apareceu de novo no começo da noite, sozinho. Ela nos encontraria para um tour pelos bares da cidade mais tarde.
"O que aconteceu?", "Nada", "Como?", "Só nos encontramos..."
Parecia estar ocorrendo uma revolução naquele corpo. A agitação denotava traços de ansiedade, preocupação e uma alegria profunda.
Choveu. Torrencialmente.
Chegou o horário marcado e continuava chovendo forte.
Foi preciso segura-lo para que não saísse na chuva.
"Eu nunca mais vou encontrá-la"
Saímos atrasados. Pouca coisa. Nada que qualquer pessoa não tivesse esperado. Ela não estava lá. Esperamos. Tomamos um vinho. Ela não chegou. E continuou não chegando...

E todo dia, em todo o passeio, ele passou a olhar pela janela esperando pelo inaudito.
E passou o resto da viagem olhando pela janela.
Ele tinha razão.
Disse-me uma vez que naquela ocasião tinha se sentido invadido. Ela o quebrou. E ao quebrá-lo abriu-o para o inesperado, para o caos...
E assim ele se foi... se rearranjar em um caos para desfazer-se nele novamente...
Ainda nos amamos.