6.8.17

Mal que me persegue

Imagem relacionadaEscrevo essas notas em um pequeno momento de lucidez.
Decepcionei minha família. Sobretudo decepcionei minha mãe!
Minha mãe trabalhava 12 horas por dia. Dedicava-se ao máximo, para que nós pudéssemos ter a melhor educação possível. Para pagar comida, material escolar, ônibus! Sempre reconheci isso! Que teria sido da vida sem ela?
Meus irmãos foram em seu encaminhando em seu exemplo. No exemplo de seu trabalho e esforço. Não que eles realmente estivessem mudando de vida, mas pelo menos estavam ganhando suas próprias vidas dignas.
Eu gostava de ler. Ela motivava. Era pouco para resistir à vida. Vida que vinha bater a minha porta e dizer que eu deveria trabalhar, largar tudo, ou que deveria me comprometer com as coisas erradas.
As coisas erradas...
As coisas erradas me perseguiam. Agora mesmo elas estão atrás de mim. Elas me perseguem!
Não sei exatamente quando elas começaram a me perseguir. Só sei que eu sentia. De repente comecei a perceber que elas estavam atrás de mim... olho para trás e... nada!!! Não tinha nada! Eu só sentia que andava atrás de mim, mas não via nada. Agora mesmo, mesmo nesse breve momento lúcido, não sei direito o que veio antes. Sei que não consegui mais me livrar dessa sensação... deles estarem me perseguindo.
Eles estavam o tempo todo ouvindo o que eu dizia, vendo o que eu via. Mas eu olhava para trás e não tinha nada!
Que porra é essa?
Eu tinha certeza que tinha alguém ali atrás, mas eu olhava... e nada.
Assim eu segui. Não sei exatamente. Mas sei que algumas coisas erradas chegaram muito perto de mim e eu não aguentava a pressão! Ou a pressão veio depois? Sei que cedi! Cedi às coisas erradas. Só que por alguns instantes... alguns minutos que fosse... eu parava de olhar para trás. Parava de sentir que tinha alguém prestes a me pegar.
Malditos!!!
Parem com isso!
Não, eles não estão aqui agora.
Parece... mas não...
Sinto-os...
Foda-se!
Não sei exatamente, mas foi algo mais ou menos assim, quando comecei a escutar: eles estavam atrás de mim. No começo apenas sentia, mas depois também ouvia. Sei que agora eles estão me ouvindo e depois me punirão.
Sim eles vão me punir...
A menos que...
...
Então eu comecei a escutá-los também!
Não dá para não escutá-los! Mas não devo! Eles dizem coisas erradas... Eles dizem para eu matar, dizem pra eu me matar! Dói minha mão, dói... ca-da-jun-ta-da-mi-nha-mão. Penso na minha mão apertando um pescoço, apertando um gatilho, atravessando alguém com uma faca. Atravessando a mim mesmo com uma faca! Eles também dizem para eu me dilacerar, para eu me mutilar! 
As vezes só quero acabar com tudo isso logo de uma vez... Parar um pouco de sofrer...
Minha mãe não merece isso! To com um demônio em mim! O pastor disse que quem tem vontade dessas coisas é obra do inominável!
Maldito!
Sai do meu corpo!
Porque você tá aí o tempo todo falando comigo?
Maldito!
Não consigo não escutá-lo...
A menos que...
...
Entende que com tudo que eu fiz eu a decepconei e não poderia deixa-la sofrer tanto!? Não a deixando saber o tanto de coisa que eu fiz, o que eu me tornei. Fugi. Acovardei-me. Mas também não tinha outro jeito de sobreviver a tudo isso e ela a mim...
Ela não poderia resistir ao que estou me tornando! Quero arrancar essas escamas de maldade que invadem minha pele, essa fumaça impura que me corrói por dentro... Alguém arranca meu nariz? Alguém costura minha boca?
Não quero mais...
Não quero mais aquela fumaça. Não quero mais essa vida. Não quero mais essa perseguição! Preciso acabar com isso! Eles estão atrás de mim o tempo todo! Não posso matá-los...
A menos que...
Eles estão em mim...
E eu os odeio! 
Eu sou uma vergonha...
Odeio cada parte de meu corpo por onde eles falam...
Eu sou uma vergonha...
É isso! Vou acabar com cada um deles...
Não tenho coragem... não sozinho...
Covarde além de tudo!
Covarde...

Pois que o ódio venha! Mais agudo e implacável! Porque odiando terei força! E que venha o mal que me persegue, quero todos eles junto de mim, o mais que podem, porque quando nós cairmos daquele viaduto eles irão comigo! 
Uma garrafa, duas, três...
1 pedra, 5, 30 pedras...
Até que eu tenha coragem...

Já vejo aquela ponte em vertigem.

18.7.17

Linhas de vida e de morte

Ariadne e Teseu, Nicolo Bambini, 1651-1739
Ariadne recebeu esse nome porque uma vez sua mãe ouviu uma história... uma história qualquer, não lembra exatamente qual. Algo sobre ela costurar e salvar um herói. Talvez tivesse aí um misto de desejo e esperança... Esperança? Na melhor das hipóteses, teria alguma dignidade costurando para alguém... Sua mãe não poderia desejar nada melhor do que isso ou imaginar que ela poderia ir mais longe, ter melhor sorte...
Aquele seu marido era um filho da puta! Suas gravidezes tinham sido estupros, do começo ao final. E assim nasceu Ariadne, em meio a urros de dores. Múltiplos lugares existenciais doíam a cada contração e carne rasgada.
Assim, ela nasceu apanhando! Já apanhava na barriga. Claro que da barriga não queria sair e ao despertar para o mundo-cão já apanhou do médico, para ver se estava viva, para que chorasse. Chorou daquela vez e mais algumas outras vezes quando ainda era criança. Depois não mais. Quanta fragilidade se expõe em uma lágrima?
Quando tinha uns nove anos chorou de novo. Foi quando percebeu que se continuasse vivendo ali não conseguiria viver. Sim, aos nove anos. Seu corpo já estava muito marcado de cicatrizes, não tinha mais criança ali, só um pequeno ser pré-púbere com ódio do seu mundo. Era preciso ir para outros. Lá longe, no centro, tinham pequenos seres como ela que viviam livres, pelas ruas. Pegou uma mochila com algumas roupas, em uma noite, e foi. Chorou enquanto pulava a janela, corria pelo quintal, escalava o muro por um lado e descia pelo outro. Pensava em sua mãe pela manhã, ao encontrar sua cama vazia.
Sua primeira noite, fria, teria sido totalmente solitária, não fosse por um cachorro. O pequeno cão afeiçoou-se a ela e dormiram juntos, abraçados, esquentando-se. Muito mais carinho do que estava habituada.
Lá no centro encontrou seu bando. E pelos cantos escuros da cidade iam sobrevivendo, mangueando, realizando pequenos furtos. Fugindo da polícia, do conselho tutelar, de incheridos que queriam "melhorar" suas vidas. Não havia melhor do que aquilo para eles. Por alguns anos, Ariadne sumiu através de frestas e buracos nos muros. Via, vez por outra, algum conhecido à distância, até mesmo sua mãe, mas ela sempre via antes e sumia em algum canto escuro.
Até que um dia ela descobriu que estava grande demais para passar entre dois muros. E foi, pela primeira vez, para a Fundação Casa. Mentiu os contatos de sua família. Quando saiu, depois de 2 anos, voltou pra rua. Tinha perdido um pouco o traquejo. Também tinha perdido seu grupo. Também tinha perdido seus animais. Quando foi presa, dormia entre 4, três cachorros e um gato. Ninguém ousava chegar perto. Sua primeira noite foi solitária. Já tinha seus ares de mulher... e não passou a madrugada ilesa... E a aurora veio com ódio e sangue.
Voltou a ter companhia de seus animais. Adotou um ou outro cachorro, depois outro.... Mangueava para ela e para seus amigos e, sempre, eles comiam primeiro. O centro já não tinha tantos adolescentes. Diziam que a polícia estava fazendo o rapa... era preciso estar escondido o tempo todo. Usou de todas artimanhas para sobreviver, mas ainda não se entendia com seu corpo. Acabou pega de novo. Dessa vez para um abrigo. Onde ficou por um tempo. Eram aquelas paredes. E aquelas pessoas. E aquelas ordens todas. Nada daquilo fazia sentido. E nada daquilo penetrava sua pele, seus instintos, seus ouvidos. E na cama estava sozinha. Fugiu.
Pouca gente, hoje, percebe que ela ainda está saindo da adolescência hormonal. Na verdade, pouca gente percebe que ela existe... quem percebe, vê uma mulher.

Um dia, uma mulher estava na frente de uma igreja. Igreja grande. Muita gente passando. Dia de comércio movimentado. Como quase todos os dias por ali. Tinha dois cachorros. Em uma bolsa um gato cinza, na roupa um rato branco. No chão algumas roupas e outra bolsa, e alguma comida em uma marmita. Por algum motivo aquela mulher estava batendo nos cachorros. Batia com força. Cachorros vira-latas fortes. Um esganiçou, o que chamou a atenção indignada de uma transeunte qualquer. Que não era bem qualquer transeunte.
No dia seguinte a tal transeunte voltou. A mulher estava deitada, cercada por seus animais. A tal transeunte apresentou-se como sendo de uma associação protetora dos animais e perguntou de quem eram aqueles pobres famintos (os bichos). A mulher mandou a protetora à merda. Esta insistiu e foi rechaçada com violência. O que a mulher não viu é que duas viaturas da Guarda Municipal estavam protegendo aquela abordagem. Quatro guardas chegaram, fizeram a mulher levantar para passar por revista. Enquanto estava tendo seus pertences e seu corpo revistado, a mulher apenas viu, de canto de olho, a tal protetora colocando seus animais em uma van... os cachorros e o gato. Nesse momento o rato mordeu a mão de um guarda, que o pegou pelo corpo com muita força e o atirou longe. Teria sobrevivido? A mulher reagiu, gritou, gritou mais alto e começou a bater naqueles quatro homens. Ameaçou correr, mas recebeu um chute na perna que a derrubou. Ali mesmo recebeu outros chutes. Dali, com a boca sangrando, viu seu companheiros indo embora. Dali viu a protetora com olhar de medo para ela e para os guardas indo embora. Viu os guardas jogando seu pertences - sua bolsa, um retrato velho, o RG, a receita do anticoncepcional, um par de bijuterias e um perfume barato - no lixo e se afastando devagar, rindo. Dali também viu o lixeiro levando tudo para algum lugar que não existe. E viu a luz do dia acabar.
Ali, Ariadne, com o sangue escorrendo da boca para a calçada de pedras portuguesas, na frente da igreja, chorou de novo.
E nunca mais vimos Ariadne.

15.7.17

Carlos se fudeu

Carlos se fudeu.
Veio da perifa. Lá onde Judas perdeu as meias... porque as botas já tinham ficado no último lugar em que as pessoas ainda tinham algum tipo de direito. Negro. Porque isso ainda coloca uma âncora no pé.
De um casebre, que está com alguma alvenaria só há poucos anos, talvez uma década. Até hoje no osso... aquele acabamento que não foi possível comprar porque acabava com o orçamento familiar.
E que família. Vários irmãos. Uns tantos doentes. Os quartos eram 2, três com a sala. Casinha de cubículos de lego ocupada por vários bonequinhos.
Carlos de fudeu.
Pinga, cocaína e crack.
O tráfico dá muito mais futuro que a rotina semiescrava de trabalho para algum senhorio branco. Não nos enganemos. Não há futuro, por um lado ou outro. E não há família "Doriana" na miséria. E é aí que a rua alberga.
Na real? As portas estão fechadas. Umas brechas às vezes aparecem, mas a negritude já acaba com metade dessas. A situação fecha o resto. Ainda assim segue-se na luta. "Sou brasileiro e não desisto nunca", a Esperança, o último mal da Caixa de Pandora.
Não há futuro. Não há porque cuidar-se. Real? A pinga causa, mas também cura a dor. E se a dor é uma permanente certeza cotidiana... A vida de Carlos valia menos, não há dúvida. A vida de Carlos mal valia algum esforço, nem dele mesmo, nem da família. A vida de Carlos talvez valesse um cigarro soltinho, um corote ou uma pedra (das de 5...). Certamente não mais do que isso.
Carlos ainda teve quem tentasse no mínimo cuidar de algum resquício de dignidade, do que poderia ser uma fagulha de vida que se produzia naquele corpo. Foi pouco...
Carlos se fudeu.
Cerca de 40kg perdidos depois, morreu em casa, num quarto pequeno e escuro, mal acabado. Mas não morreu sozinho na calçada... ali, naqueles últimos minutos reconciliou-se com a família, com o colchão, com o teto, com a vida, com o afeto. Naqueles últimos minutos recebeu e deu, descobriu um pouco do que a vida poderia dar.
Não romantizemos... claro que Carlos foi um babaca também. A vida tem muitos tons de cor... sofreu, mas também revidou. Evidentemente, eventualmente, de modo execrável à sociedade e, talvez, à própria vida.
Já nos seus últimos dias, ao vistá-lo, tive a oportunidade de presenciar uma fundamental transformação. Aquele corpo esquelético encontrou-se com aquele seu afeto e não soube dar palavras às suas emoções. Antes do fim, viu amor e carinho. Antes de ir, como um pai, ainda coube-lhe dizer: "cuidado na volta, a pista está molhada".
Carlos não morreu de câncer. Carlos morreu de pobreza, negligência, preconceito, racismo. Morreu quando ainda estava vivo.


Ah... claro... só não esqueçamos que a morte também é parte da vida e nela também se produz vida... e quem poderia entender a vida que Carlos produziu?

11.4.17

A Glória e a Cachoeira

Com seu palheiro de canto de boca, Dona Glória cuidava da casa. Quando não, cuidava do filho. Quando não, cuidava do neto. Quando não, do marido adoentado. Dona Glória existia para servir. Entretanto a vida de Glória foi seguindo o caminho que tinha que seguir. Moedas contadas. Economizava-se em cada pequeno detalhe do cotidiano. Fosse a boa pesquisa das marcas e mercados mais baratos para a compra do mês, fosse preferir o frango à carne, se é que teria mistura, fosse tomar um banho expresso e funcional para economizar nas contas de água e luz.
No esforço e no sacrifício a vida de sua família andou. Não haveria outra maneira. O filho virou homem, com um bom emprego. Os tempos de carestia estavam em um passado. Os velhos hábitos seguiam, não havia porque mudá-los. Vida simples, casa simples, dedicação total a isso.
O neto cresceu, já não necessitava da atenção tão esmiuçada de uma criança pequena. Ele mesmo já não estava tão interessado assim no colo da velha. O marido acamou-se. O mundo fora de casa seguia não existindo, existia apenas o aplacamento do sofrimento de seu velho companheiro.
Enfim, seguindo o inexorável curso da vida, ele faleceu. E Dona Glória já não lhe servia. Tampouco servia Dona Glória para cuidar do filho, dinâmica vida urbana moderna que ele já levava. Tampouco servia muito ao neto, que apenas aparecia aos domingos para comer de sua macarronada ao almoço e de seus biscoitos cuidadosamente preparados à tarde.
Dona Glória já não servia de nada.
E a vida fica cinza quando já não se tem serventia. Quando não se encontra cor e ritmo.
E a velha não via o sol. Em tantas décadas pouco tinha saído para apenas apreciar uma tarde e já não sabia como fazê-lo. E a velha já pouco cozinhava, pois já não tinha a quem alimentar. E a si própria aquele arroz com feijão perdera o sabor. A televisão gastava muita eletricidade, por não mais do que duas horas estava ligada. Os banhos seguiam sendo rápidos. Os livros... algum momento da vida teve gosto por leitura, mas então já não teve tempo para dedicar a tão banal atividade. Os poucos que lhe sobraram agora eram calço. De toda forma, o aguçamento de seus olhos já não servia a essas coisas de gente inteligente.
A própria Dona Glória ficou cinza e corcunda. O peso da vida não era mais possível de sustentar.
Então um dia seu filho chegou. Era um domingo. Parecia acometido de alguma febre, uma ansiedade adolescente ou sei lá o que. O neto também estava muito animado. Mais do que o comum. Entretanto, nada de diferente lhe falaram. Dona Glória serviu a mesa. Rezaram, comeram. Dona Glória tirou a mesa, lavou a louça e sentou corcunda e cinza em sua velha poltrona.
"Vamos mãe! Vamos sair!" Disse um agitado filho, enquanto o menino pulava sorridente de um lado a outro.
Tomaram um caminho que ela mesma nunca havia feito... em tantas décadas de vida... desde seu nascimento, naquela mesma cidade. Passaram por fazendas. A estrada asfaltada cedeu lugar à terra. A terra batida à lama, aos buracos. O carro balançava e ela agarrava-se fortemente aos anteparos do banco de passageiro. Fazenda após fazenda entremeavam-se com uma vegetação arbustiva, árvores retorcidas, lindas. Nunca havia reparado na existência daquelas flores, pequeninas, roxas, amarelas.
E então uma ponte de madeira. Madeira grossa. Certamente vinda de outro lugar. Atravessaram-na pelo mero prazer de atravessá-la. Foram para um lado de carro e de volta ao outro a pé.
Resistente e ressabiada, mas ela acaba deixando-se conduzir por um caminho de lama batida que desce ao lado de um mourão onde começa uma pequena mureta da ponte. Descendo paralelo à estrutura de madeira, seguem a um caminho que margeia rente ao raso e semi-cristalino rio. A cor amarronzada da água não permitia ver o fundo onde o leito se tornasse um pouco mais profundo, por uma curva ou um buraco nas pedras.
Que maluquice a desse menino! Levar uma velha ao rio! E fazê-la andar por entre as pedras. E fazê-la andar no próprio rio. E ir de uma pedra a outra até atravessá-lo. Para, enfim, do outro lado, descer por uma escada tosca e naturalmente esculpida entre pedras amontoadas. Finalmente, chegando a uma pequeníssima praia de areia marrom quase-escura de frente a uma bela cachoeira. Nenhuma grande queda, talvez uns 2 ou 3 metros até o nível d'água, mas em volume suficiente para fazer uma razoável pressão em quem se aventurasse por ali. Seu poço permitia aproximar-se dela andando, ainda que, facilmente, uma pessoa alta teria a água pela cintura.
Uma cachoeira... já ouvira falar disso, mas nunca se arriscaria, nunca ousou tanto atrevimento... e sempre parecia tão distante... Seu filho e neto logo estavam de sunga. Ela não tinha biquini, maiô, nem sabia nadar... Sentou em um pedra e calmamente fez seu cigarro de palha, vendo as crianças brincarem felizes na água, anquele bicho estranho.
- Faz vinte anos que acampo aqui! Aquela pedra ali, caiu dali ano passado, com a chuva!
Falava e indicava, animadamente, um homem de uns 50 anos, conversando com seu grupo, de homens, enquanto bebiam uma cerveja barata.
Vinte anos...
Vinte anos e ela nem sabia da existência daquele lugar!
- Pai, tem um ninho aqui!
Apontava o neto, dentro de um pequena gruta que se formava sobre o rio, após o poço da cachoeira. O sol se refletia no rio e iluminava o teto, pedras polidas pelo tempo, brilhavam. E seu assombro só aumentava. Hipnotizada pelas luzes levantou, lentamente entrou na água fria até a gruta, apoiada eu seu cigarrete. E de repente sentiu como se entrasse em outro mundo. E de repente lembrou de qualquer história de saci, curupira e onça que já nem se contam mais. E cada história lembrada levantava um pouco mais sua cabeça e cada momento a mais de água gelada colocava seus ossos um pouco mais no lugar.
- Vem mãe!
- Vem vó!
Gritavam eles do poço.
Não ousou.
- De roupa?
- É!
- Vai mãe que a água está acabando!
Ela ainda vacilou!
- Vai mãe que essa não gasta eletricidade! - e disse baixo, ao filho - Agora ela vem!
E foi! Ora essa! Estava brincando com a cara dela! E como não entraria!
Dez segundos de coragem, até a água à cintura. Alguns minutos de vacilo, de pé, olhando de pertinho a dança das gotas em queda. De canto de olho viu que suas crianças a observavam, de perto, com um sorrisso terno.
Entrou! E foi tomada pela pressão da água! Instintivamente estacou as pernas cansadas e ganhou força. E foi invadida pelo frio. E foi tomada pelo calor da força hidráulica. Frio e calor. E endireitou o tronco. E entregou os ombros à massagem das forças da natureza. E ali deixou-se. Entregue. Não passiva como em toda a sua vida, mas equilibrando-se com toda aquela energia... cinética, térmica, emocional, espiritual, da natureza.
E depois de muito tempo saiu... e, talvez pela primeira vez, viu o horizonte...

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* história fictícia, inspirada na vida e nas paragens observadas.

Junto com os cursos d’água e cachoeiras a cidade de Agudos possui uma flora nativa com floresta de cerrado. A Cachoeira da Glória é particular. Seu acesso é livre por estar à beira da estrada da fazenda. Para chegar, entra-se em Agudos pela entrada principal, seguindo reto até atravessar completamente a zona urbana, sentido Fazenda São Benedito, localizada no quilômetro 5 da SP-273. Em seguida segue-se em frente até acabar o asfalto e continua o percurso na terra até a sede da Fazenda Glória que terá um portal à direita. Quando chegar nesse portal, vira-se à esquerda e segue-se a estrada até chegar numa pequena ponte de madeira que dá acesso à cachoeira. O lugar não possui infraestrutura turística, não é necessário pedir autorização e nem agendamento prévio. É só descer a trilha junto ao rio.

18.1.17

Sara arrebentada

Como a maior parte das negras, Sara nasceu pobre, em uma cidade no sul do país. Ainda que pobre, a família conseguia prover a subsistência, os estudos, a comida, o sono. Sara viveu sua puberdade naquele ambiente em que a violência é uma legítima linguagem. A “boca” era a meio quarteirão da escola, o beck, a farinha e a pedra eram fáceis, o tráfico dava as regras. De jovem já se começava, com alguma frequência, a usar em uma praça ali perto. A etiqueta da inclusão em um grupo adolescentil.
O problema dela, naquela época, não foram as drogas, foi a ardência da paixão juvenil, mas foi também o machismo. Ela se apaixonou por um rapaz. Diziam que era um bom rapaz, simpático, educado. E assim era, no começo. Romântico, seduziu-a. Levou-a pela cidade. Bebiam e transavam. Mas as sensações ainda eram poucas. O sangue dele pedia mais intensidade, mais explosão. Começou com um tirinho. Dois, três. Pegava-a com força. O sexo era com força, mesmo quando ela não queria! E para relaxar, para sentir mais, fazia-a cheirar também.
Quando ela engravidou, disse a todos que era uma puta. Sim, Sara era uma puta! Não merecia respeito! Estaria grávida de outro. Jogou-a na sarjeta e sumiu. Sua mãe a acolheu. O dinheiro não dava para a coca, passou a fumar pedra. Parou quando a criança nasceu, ainda era uma boneca para ela, mas era uma boneca que ela amava muito. Precisou largar a escola. No seu bairro seguiu sendo a puta, entrava e saía de casa buscando o trabalho e os olhares tortos a marcavam, denunciavam sua devassidão, mesmo a não cometida. Trabalho? A única chance de uma negra pobre, mãe jovem e solteira, sem estudo, é trabalhar muito e não ganhar nada.
Tão insuportável situação amainou quando outro homem se aproximou. Ele calou, de uma forma ou de outra, a maledicência da vizinhança. Ele também a calou, a puta estava dentro de casa e ele era dono dela agora. Se não era com ofensas, calava-a com tapas. Sara bebia. Um ou outro corote por dia. Era para anestesiar o latejamento dos hematomas do corpo e da alma.
Ela engravidou de novo. Em grávida não se bate. Assim suportou mais 7 meses, entre ofensas e cachaça. O parto doeu como nada! Seu salvo conduto tinha acabado! A dor era tamanha que mal podia escutar o médico mandando-a calar a boca, “para dar não gritou, não é”! O bebê nasceu bem, era um milagre, dizia esse mesmo médico, no dia seguinte.
Mais um ano apanhando… Num dia gritos, noutro tapas. Quando ele cheirava, descia a mão mais pesado. Num dia tapas, noutro pontapés, uma vez usou uma tesoura para fazer pequenos furos. A cicatriz do cigarro apagado em seu nariz ela carrega até hoje.
O bebê não poderia viver ali, a avó ficou com mais esse. Até que o tráfico deu um fim no homem. Só que quando isso aconteceu a bebida já não era mais suficiente para anestesiar, estava fumando pedra de novo. Qualquer um notaria no dedo queimado, nos lábios rachados, nas costelas aparecendo, no olho fundo.
Voltou para a mãe. Doente. Ambas estavam. Encontrou uma porta fechada. Ela não ficaria ali, com as crianças, drogada como era, mulher da vida. A mãe fechou-lhe a porta, não tinha mais saúde para os desvarios da filha, para busca-la na rua. Agora Sara não tinha para onde ir… vagou pelas ruas… por um tempo trocou seu corpo por um teto e umas pedras de crack, apanhava, mas já não era tanto. De um canto a outro ouviu falar de uma cidade, para onde muitas mulheres iam fazer programa, rendia um bom dinheiro. Todas iam e vinham e sempre tinha espaço para mais uma que soubesse fazer bem o trabalho. E ela sabia… há tantos anos…
E foi… e ainda não voltou. Porque lá chegando encontrou bordéis e encontrou dinheiro. Ainda recebia pouco, mas sonhava que em pouco tempo poderia subir umas duas ruas e ganhar umas três vezes mais. Só que assim como pobre não fica rico, puta barata não vira garota de programa. Os homens não a batiam mais, mas a cafetina sim. A mulher, dona do puteiro, ameaçava “suas” meninas. E concretizava cada ameaça! E forçava as meninas a fazerem os programas sem preservativo. E também forçava o aborto. E chegou a vez de Sara. Sara engravidou de novo. E então a chibata cantou. Mas aí que algo de quilombo despertou e Sara revidou.
Mais uma vez estava na rua. Fugiu rápido, pois se ficasse não acordaria no dia seguinte. Cidade grande é bom, porque é só mudar de região para já sumir do mapa. Foi para uma boca, às margens de um córrego. Ali encontrou um senhor que lhe dava um teto ocasionalmente. Mas a vizinhança se perguntava quem era aquela puta craqueira prenha que estava por ali. E logo já não pôde mais ficar ali. Gestante é ruim para os negócios, chama a atenção.
Finalmente encontrou outro rapaz por quem se apaixonou. Apaixonou ou sentiu-se um pouco mais segura? Ele não batia nela. Cuidava dela. Ficava em um buraco de uma estação de trem urbano abandonada. E ali os dois passaram a morar. Ele conseguia comida, cuidava dela, mas o crack era permanente em suas vidas, mesmo não tendo dinheiro. Fumavam juntos e se cuidavam, se protegiam, se respeitavam. Sim, na rua também há cuidado.
Sara, por um momento, encontrou quem cuidasse dela. Um breve momento. Grávida encontraram-na por ali, olharam para ela e insistiram. Apesar de, a essa altura, o crack gritar a uma altura ensurdecedora, e a violência ser um modo de vida, e a rua ser um habitat.
Sara conseguiu sair da rua. Conseguiu não fumar. E por algumas semanas conseguiu se cuidar, se maquiou, comeu, engordou. E voltou para a rua, seu companheiro ainda estava lá, dependia dele tanto quanto do crack.
E quase pariu no buraco. Sara sentiu seu útero contrair, sentiu o líquido escorrer por suas coxas. Sentiu a pressão. Sentiu que ia nascer. Apesar disso, ainda esperou um pouco. Não podia nascer no buraco, mas também não queria ir para o hospital. Fumou uma pedra, criou coragem. A ambulância chegou no exato momento para que ela pudesse chegar ao hospital e lá ter sua bebê em pouco tempo. Foi tão pouco tempo que não precisou escutar os arroubos moralistas de algum médico ou enfermeira babacas. Pensou nisso em meio à última contração, à última força para parir e com um sorriso de canto de boca, "venci", pariu.
E parou de novo. Parou tudo. Largou aquele homem. E prometeu não mais fumar. Queria aquela filha. E queria voltar para a casa da mãe. Esta já tinha dito que a aceitaria de volta com a criança, “limpa”. Mas aí alguma coisa deu errado. "Dinheiro na mão é vendaval". E simplesmente não sabia mais o que podia fazer com um algum dinheiro à disposição. Há muito tempo que tinha pouquíssimas opções, talvez só tivesse uma coisa que soubesse fazer…
Fumou…
Na linha do trem, por onde vagava, uma mulher cuidou de sua filha. Cuidou? Nem Sara sabia direito o que estava fazendo.
Sara já não sabe direito que será de sua filha…
Sara não acredita na Sara. Desde a adolescência. E ninguém acredita na Sara. E agora, Sara está internada… tenta ser menos louca ou mais adequada? Por ali alguéns ainda acreditam nela e quem sabe, em algum momento, ela consiga tentar de novo… ali ou lá…