31.3.11

A Notícia

(... continuando...) Voltando a escrever...


- É importante que eu diga a vocês! Se as coisas foram dessa forma, a culpa é minha!
O homem de calça social, camisa azul muito clara, já chamava atenção por seu porte e distinção. Seus traços duros mas bonitos. Ao dizer isso várias pessoas naquela ampla sala pararam de falar e olharam para ele. Não puderam conter a surpresa, a curiosidade e até a indignação! O rumor se espalhou, conversas viraram cochichos, todos prestavam atenção no que ele iria falar.
A viúva, uma mulher que nem chegava à casa dos 40, bela, de rosto delicado mas altivo. Sua tristeza não marcava sua beleza, mas transpirava pelos poros. Estava sentada, cansada, um peso inclinava seu tronco. Uma senhora de uns 70 anos estava sentada ao lado, simplesmente a abraçava. Outras, igualmente tristes e igualmente não abatidas estavam em cadeiras próximas. O homem, do lado contrário do salão.
Ao falar, sentou, exasperado!
Apoiou os cotovelos nos joelhos. Sua boca repuxou, sua culpa desmanchou seus olhos! Apoiou a face nas mãos. Alguns olhavam de soslaio, outros fitavam diretamente. Um a um, os que estavam por ali foram se sentando, deixando um livre caminho de olhar entre ele e a viúva.
- O que te atormenta meu filho? - perguntou a senhora.
- Ele ainda poderia estar vivo! Sem dúvida que sim! Perdoe-me por matá-lo!
- Mas quem é o senhor? Por que pensa esse despropósito? - surpreendida a viúva.
- Diego, o médico que deu a notícia...
- Meu rapaz... conte sua história, por que carrega uma culpa tão grande? Não tenho dúvidas que meu filho seguiu o caminho que achou mais importante, não deve haver culpa sua, mas se te conforta o espírito, conte-nos.
Todos sentaram para ouvi-lo.
- Eu não lembrava bem dele. Só lembrei de toda a história porque vocês me mandaram o recado para vir ao velório.
- Sim. Ele deixou uma lista de contatos. Para você também tinha deixado o número do prontuário.
- De fato eu sequer viria se não fosse isso. São dezenas de pacientes todos os dias. É impossível lembrar de todo mundo. Um ou outro deles falecer é algo até corriqueiro. A gente sempre lamenta não é, mas eu já não me abalava. Mas quando chegou o recado, o nome completo dele... veio-me todo aquele dia para a memória. Que dia terrível!
Sim! Primeiro chegou um a meu consultório que queria que eu prescrevesse o mesmo remédio que o vizinho tomava, achava que iria melhorar tanto quanto ele. Mas aquela medicação não lhe era indicada! Era um homem grosseiro, um rosto quadrado, nunca mais me esqueci! Cabelo pouco! Começou a esbravejar. Eu continuei a negar, ele levantou-se, bateu na mesa e disse que fizesse o que estava mandando porque era ele quem estava pagando! Fiquei transtornado e o expulsei do consultório.
Depois veio outro, uma mulher obesa. Já tinha perdido muito tempo com ela, mas dessa vez ela chegou quase morrendo! Paramos tudo para atendê-la. Foi uma confusão sem tamanho. Meu estresse estava no limite! Estava irritado! As pessoas não seguiam o que eu falava e depois vinham dar trabalho! Eu orientava, explicava, mas nada!
Então a enfermeira trouxe os papéis de seu filho. Ela dava uma olhada em tudo antes de me trazer, adiantava uma coisa ou outra. Chegou com aqueles lindos olhos azuis arregalados. Pôs os papéis na minha mesa e apontou o resultado do laudo. Câncer! No cérebro! Estava chocada, tão novo, tão bonito! E iria morrer!
Os lábios de Diego se contorciam. Ele os mordia, mas nesse momento não foi mais possível conter. As lágrimas vertiam, intensas, buscavam expiação por suas falhas.
- Eu fiquei louco com a intervenção dela! Lembro das minhas terríveis palavras como se fosse hoje! Bonito?, perguntei eu. Vi no laudo que de fato o prognóstico era péssimo! É mais um que morre! Os cabelos negros da Silvana caíram, percebi, em seus olhos o quanto ela me reprovou naquele momento! O quanto estava decepcionada! Não dei importância e ela saiu.
Quando ele entrou, fui rápido e taxativo. Você tem um câncer cerebral. "Mas..." É! É maligno! "Mas tem tratamento?" Tem sim, mas poucas chances de cura. "O que se pode fazer?" Sobretudo cirurgia, mas talvez não seja operável. "E qual o risco?" Você pode morrer durante a cirurgia, ou ter seqüelas importantes, motoras, cognitivas e perceptivas. Eu não lembro! Simplesmente não lembro do rosto dele, não lembro do corpo dele, não lembro da expressão dele! Não sei como ele recebeu a notícia. Nada! "Quanto tempo eu tenho?" Na melhor das hipóteses alguns meses, se tiver sucesso no tratamento talvez alguns poucos anos. Ele ficou calado, eu preenchi os papéis com os encaminhamentos todos que deveria ter. E ele saiu.
Depois que ele fechou a porta a Silvana entrou, deixou um papel na minha mesa e saiu. Era um pedido de demissão! Fiquei furioso! Aceitei na hora! Só a vi uma vez depois daquilo... e eu era apaixonado por ela! Só agora me dou conta!
E então ele chorou... as comportas foram abertas...
Levou um tempo até que alguém falasse algo novamente. E foi ele, ele continuou.
- Dois dias depois, quando eu estava saindo do consultório, ele apareceu. Lívido, mas com certo sorriso no rosto. "Obrigado doutor, você me libertou!" Apertou minha mão e foi embora! Tive a certeza que o tinha tratado mal, que tinha feito mal a ele, mas ainda assim ele me agradecia! Essa frase ecoa na minha cabeça até hoje!
- Vai ver foi por isso que meu filho o quis aqui hoje. Não por ele, mas por você. No cabeçalho da lista com os nomes das pessoas que estão aqui hoje estava escrito: "Pessoas que eu amo e que eu espero que se conheçam!" Você traz um pedaço da história dele... talvez ajude a entender tudo o que aconteceu. O falecimento dele está sendo muito doloroso, pois ele passou meses desaparecido e nós não entendemos o que estava acontecendo.
Dentre os cochichos era possível perceber que uns e outros amaldiçoavam o médico. Palavrões e xingamentos. O homem perdeu toda a pose, estava encolhido como criança assustada.
De traz de uma coluna de mármore encimada por um vaso com folhagens verdes saiu uma mulher de pele branca, cabelos muito escuros e olhos azuis luminosos. Movia-se silenciosa a tal ponto de passar despercebida por quase todos. Naquele momento a maioria estava sentada em um irregular círculo, à borda do qual ela se aproximou e falou em tom imperioso:
- Alguém aqui pode trazer Zeca de volta? Então não sejam tão apressador em condenar o Diego! - ela olhou para ele com doçura.
- Silvana?
- Eu o desculpo, mas não carregue culpa. Zeca fez uma escolha... consciente... ele foi embora comigo!
Houve um choque entre os presentes. Ninguém entendia nada! A viúva se contraía na cadeira, a mãe levantou e sentou de novo... Silvana sentou com os outros.
(continua...)