24.12.18

Das retas às linhas

Em outro tempo estávamos conversando das curvas descendentes que se tornaram retas. Esse é apenas um dos movimentos que expandem a vida... as retas também precisam tornar-se curvas para que a vida vá além...

E certa vez conheci um um homem. Ele não tinha nada em especial. Nada. Nada que fizesse chamar a atenção para ele. Exceto a dor. Uma dor causticante, castigante, que lhe atingia as costas permanentemente como um açoite. A propósito, um açoite quebrando-lhe as costas é a boa imagem deste homem cafuzo, que nasceu apanhando, mais de uma vez foi abandonado à própria sorte desde tenra infância e muitas vezes apanhou... Não que não tenha feito escolhas erradas, mas quais escolhas são certas quando o mundo está contra você?
Suas pernas fortes, de quem resiste nos pesares e apesares, carregavam um homem gemente, dividido em dois: membros inferiores rijos, dorso duro, inclinado, que já suporta mais os pesos do mundo. Mesmo Atlas se apiedaria daquelas costas alquebradas.

Eis que certa vez, em um lampejo da vida - uns diriam destino, outros apenas as consequências naturais da existência - ele encontrou pessoas que olharam para ele e sentiram junto sua dor. Poucas coisas são tão poderosas quanto a empatia e a solidariedade. E de grupo em grupo encontrou formas  de suportar tanto peso. E em um de seus ciclos de cuidado encontrou o teatro.

Ali pode olhar para suas estruturas, para o que erige e o que bambeia suas pernas. Ali pôde contar sua história e revivê-la em seu corpo junto ao corpo dos outros. E viu seu corpo e teve nacos de auto-percepção.

Olhando daqui, não dá para saber o que mais influi naquelas veias para que suas retas dobrassem. A chibata cantou diferente no apoio que tinha ao recebê-las e ao dividi-las. Sei que certo dia, numa sala, já não entrou queixando de dor. Certamente não foi o remédio. Ele deitou, levantou, alongou, pulou.
Certo dia começou a preparar-se. Fortuitamente foi chamado a subir em um palco. A brincadeira tomou muita seriedade e ele não fugiu da raia. E ao final, de joelhos, na boca de cena, curvou suas costas sobre os calcanhares, ergueu os braços e mirou as estrelas - não, o peso do mundo ainda não o derrubará por mais muito tempo...
(acho que naquela noite, naquele momento, as estrelas conversaram uma eternidade de coisas com ele que nem ele mesmo conseguiria nos contar... mas isso só conversando com ele...)

17.12.18

Feito no afeto

Certa vez conheci um homem. Seu sobrenome tinha algo que me remetia a um afeto. Quase um anagrama. Quase. Afeto...
Ele não tinha nada especial. Era mais uma alma mastigada pela existência. Sua mente pesava com mil pensamentos que faziam pouca conexão com o mundo externo, diria que mesmo que se alguém pudesse lê-los mal conseguiria suporta-los, muito menos entendê-los. Pesava e pendia.
Eram tantos pensares que seu pescoço realmente não suportava o peso. O nariz sempre apontava para baixo e então todo o seu ser acompanhava esse arco descendente. Sua boca era uma abóboda, sua coluna um arco gótico, seus olhos oblíquos tinham menos expressão vital que uma velha imagem sacra abandonada. Tudo sobre pernas finas, pequenas toras de aspecto carcomido que mal sustentam-se a si mesmas. Parece uma imagem decrépita demais para se pensar, mas se você olhar ao lado, encontrará dezenas como essa... olhe com cuidado...
Diziam que seus pensamentos ocupavam tantos pensamentos dentro e fora de si que podia passar horas em um banco de praça olhando o nada, e o tudo, que acontecia ao redor de si.
Bom... esse homem vagava pelo mundo... até que algo cruzou seu caminho. Fortuitamente ele foi chamado a um grupo... seriam apenas jogos cênicos, certamente ele não entendeu muito bem do que se tratava. Por um tempo parecia continuar não entendendo, mas algo o fazia estar ali praticamente toda semana, quieto, pensativo, pesado.
De uma brincadeira, uma cena. De outra brincadeira uma apresentação. De outra brincadeira um teatro de arena aberto! Talvez as curvaturas já estivessem mudando antes, mas ali, ao final, um sorriso se abriu.
Esse sorriso seguiu-se abrindo tímido, cada dia mais largo...
Passei semanas... meses... sem poder frequentar aquele grupo.
Certo dia voltei e quando apareci aquele homem já estava lá. E quando ele me viu, as curvas tornaram-se retas, o olhar no chão abriu-se para o horizonte e um largo e expansivo sorriso abriu-se junto com braços-janelas e deixou sair uma voz clara e bonita como poucas vezes se houvera escutado.
Ainda choro quando lembro daquele abraço...