15.7.17

Carlos se fudeu

Carlos se fudeu.
Veio da perifa. Lá onde Judas perdeu as meias... porque as botas já tinham ficado no último lugar em que as pessoas ainda tinham algum tipo de direito. Negro. Porque isso ainda coloca uma âncora no pé.
De um casebre, que está com alguma alvenaria só há poucos anos, talvez uma década. Até hoje no osso... aquele acabamento que não foi possível comprar porque acabava com o orçamento familiar.
E que família. Vários irmãos. Uns tantos doentes. Os quartos eram 2, três com a sala. Casinha de cubículos de lego ocupada por vários bonequinhos.
Carlos de fudeu.
Pinga, cocaína e crack.
O tráfico dá muito mais futuro que a rotina semiescrava de trabalho para algum senhorio branco. Não nos enganemos. Não há futuro, por um lado ou outro. E não há família "Doriana" na miséria. E é aí que a rua alberga.
Na real? As portas estão fechadas. Umas brechas às vezes aparecem, mas a negritude já acaba com metade dessas. A situação fecha o resto. Ainda assim segue-se na luta. "Sou brasileiro e não desisto nunca", a Esperança, o último mal da Caixa de Pandora.
Não há futuro. Não há porque cuidar-se. Real? A pinga causa, mas também cura a dor. E se a dor é uma permanente certeza cotidiana... A vida de Carlos valia menos, não há dúvida. A vida de Carlos mal valia algum esforço, nem dele mesmo, nem da família. A vida de Carlos talvez valesse um cigarro soltinho, um corote ou uma pedra (das de 5...). Certamente não mais do que isso.
Carlos ainda teve quem tentasse no mínimo cuidar de algum resquício de dignidade, do que poderia ser uma fagulha de vida que se produzia naquele corpo. Foi pouco...
Carlos se fudeu.
Cerca de 40kg perdidos depois, morreu em casa, num quarto pequeno e escuro, mal acabado. Mas não morreu sozinho na calçada... ali, naqueles últimos minutos reconciliou-se com a família, com o colchão, com o teto, com a vida, com o afeto. Naqueles últimos minutos recebeu e deu, descobriu um pouco do que a vida poderia dar.
Não romantizemos... claro que Carlos foi um babaca também. A vida tem muitos tons de cor... sofreu, mas também revidou. Evidentemente, eventualmente, de modo execrável à sociedade e, talvez, à própria vida.
Já nos seus últimos dias, ao vistá-lo, tive a oportunidade de presenciar uma fundamental transformação. Aquele corpo esquelético encontrou-se com aquele seu afeto e não soube dar palavras às suas emoções. Antes do fim, viu amor e carinho. Antes de ir, como um pai, ainda coube-lhe dizer: "cuidado na volta, a pista está molhada".
Carlos não morreu de câncer. Carlos morreu de pobreza, negligência, preconceito, racismo. Morreu quando ainda estava vivo.


Ah... claro... só não esqueçamos que a morte também é parte da vida e nela também se produz vida... e quem poderia entender a vida que Carlos produziu?

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