11.4.17

A Glória e a Cachoeira

Com seu palheiro de canto de boca, Dona Glória cuidava da casa. Quando não, cuidava do filho. Quando não, cuidava do neto. Quando não, do marido adoentado. Dona Glória existia para servir. Entretanto a vida de Glória foi seguindo o caminho que tinha que seguir. Moedas contadas. Economizava-se em cada pequeno detalhe do cotidiano. Fosse a boa pesquisa das marcas e mercados mais baratos para a compra do mês, fosse preferir o frango à carne, se é que teria mistura, fosse tomar um banho expresso e funcional para economizar nas contas de água e luz.
No esforço e no sacrifício a vida de sua família andou. Não haveria outra maneira. O filho virou homem, com um bom emprego. Os tempos de carestia estavam em um passado. Os velhos hábitos seguiam, não havia porque mudá-los. Vida simples, casa simples, dedicação total a isso.
O neto cresceu, já não necessitava da atenção tão esmiuçada de uma criança pequena. Ele mesmo já não estava tão interessado assim no colo da velha. O marido acamou-se. O mundo fora de casa seguia não existindo, existia apenas o aplacamento do sofrimento de seu velho companheiro.
Enfim, seguindo o inexorável curso da vida, ele faleceu. E Dona Glória já não lhe servia. Tampouco servia Dona Glória para cuidar do filho, dinâmica vida urbana moderna que ele já levava. Tampouco servia muito ao neto, que apenas aparecia aos domingos para comer de sua macarronada ao almoço e de seus biscoitos cuidadosamente preparados à tarde.
Dona Glória já não servia de nada.
E a vida fica cinza quando já não se tem serventia. Quando não se encontra cor e ritmo.
E a velha não via o sol. Em tantas décadas pouco tinha saído para apenas apreciar uma tarde e já não sabia como fazê-lo. E a velha já pouco cozinhava, pois já não tinha a quem alimentar. E a si própria aquele arroz com feijão perdera o sabor. A televisão gastava muita eletricidade, por não mais do que duas horas estava ligada. Os banhos seguiam sendo rápidos. Os livros... algum momento da vida teve gosto por leitura, mas então já não teve tempo para dedicar a tão banal atividade. Os poucos que lhe sobraram agora eram calço. De toda forma, o aguçamento de seus olhos já não servia a essas coisas de gente inteligente.
A própria Dona Glória ficou cinza e corcunda. O peso da vida não era mais possível de sustentar.
Então um dia seu filho chegou. Era um domingo. Parecia acometido de alguma febre, uma ansiedade adolescente ou sei lá o que. O neto também estava muito animado. Mais do que o comum. Entretanto, nada de diferente lhe falaram. Dona Glória serviu a mesa. Rezaram, comeram. Dona Glória tirou a mesa, lavou a louça e sentou corcunda e cinza em sua velha poltrona.
"Vamos mãe! Vamos sair!" Disse um agitado filho, enquanto o menino pulava sorridente de um lado a outro.
Tomaram um caminho que ela mesma nunca havia feito... em tantas décadas de vida... desde seu nascimento, naquela mesma cidade. Passaram por fazendas. A estrada asfaltada cedeu lugar à terra. A terra batida à lama, aos buracos. O carro balançava e ela agarrava-se fortemente aos anteparos do banco de passageiro. Fazenda após fazenda entremeavam-se com uma vegetação arbustiva, árvores retorcidas, lindas. Nunca havia reparado na existência daquelas flores, pequeninas, roxas, amarelas.
E então uma ponte de madeira. Madeira grossa. Certamente vinda de outro lugar. Atravessaram-na pelo mero prazer de atravessá-la. Foram para um lado de carro e de volta ao outro a pé.
Resistente e ressabiada, mas ela acaba deixando-se conduzir por um caminho de lama batida que desce ao lado de um mourão onde começa uma pequena mureta da ponte. Descendo paralelo à estrutura de madeira, seguem a um caminho que margeia rente ao raso e semi-cristalino rio. A cor amarronzada da água não permitia ver o fundo onde o leito se tornasse um pouco mais profundo, por uma curva ou um buraco nas pedras.
Que maluquice a desse menino! Levar uma velha ao rio! E fazê-la andar por entre as pedras. E fazê-la andar no próprio rio. E ir de uma pedra a outra até atravessá-lo. Para, enfim, do outro lado, descer por uma escada tosca e naturalmente esculpida entre pedras amontoadas. Finalmente, chegando a uma pequeníssima praia de areia marrom quase-escura de frente a uma bela cachoeira. Nenhuma grande queda, talvez uns 2 ou 3 metros até o nível d'água, mas em volume suficiente para fazer uma razoável pressão em quem se aventurasse por ali. Seu poço permitia aproximar-se dela andando, ainda que, facilmente, uma pessoa alta teria a água pela cintura.
Uma cachoeira... já ouvira falar disso, mas nunca se arriscaria, nunca ousou tanto atrevimento... e sempre parecia tão distante... Seu filho e neto logo estavam de sunga. Ela não tinha biquini, maiô, nem sabia nadar... Sentou em um pedra e calmamente fez seu cigarro de palha, vendo as crianças brincarem felizes na água, anquele bicho estranho.
- Faz vinte anos que acampo aqui! Aquela pedra ali, caiu dali ano passado, com a chuva!
Falava e indicava, animadamente, um homem de uns 50 anos, conversando com seu grupo, de homens, enquanto bebiam uma cerveja barata.
Vinte anos...
Vinte anos e ela nem sabia da existência daquele lugar!
- Pai, tem um ninho aqui!
Apontava o neto, dentro de um pequena gruta que se formava sobre o rio, após o poço da cachoeira. O sol se refletia no rio e iluminava o teto, pedras polidas pelo tempo, brilhavam. E seu assombro só aumentava. Hipnotizada pelas luzes levantou, lentamente entrou na água fria até a gruta, apoiada eu seu cigarrete. E de repente sentiu como se entrasse em outro mundo. E de repente lembrou de qualquer história de saci, curupira e onça que já nem se contam mais. E cada história lembrada levantava um pouco mais sua cabeça e cada momento a mais de água gelada colocava seus ossos um pouco mais no lugar.
- Vem mãe!
- Vem vó!
Gritavam eles do poço.
Não ousou.
- De roupa?
- É!
- Vai mãe que a água está acabando!
Ela ainda vacilou!
- Vai mãe que essa não gasta eletricidade! - e disse baixo, ao filho - Agora ela vem!
E foi! Ora essa! Estava brincando com a cara dela! E como não entraria!
Dez segundos de coragem, até a água à cintura. Alguns minutos de vacilo, de pé, olhando de pertinho a dança das gotas em queda. De canto de olho viu que suas crianças a observavam, de perto, com um sorrisso terno.
Entrou! E foi tomada pela pressão da água! Instintivamente estacou as pernas cansadas e ganhou força. E foi invadida pelo frio. E foi tomada pelo calor da força hidráulica. Frio e calor. E endireitou o tronco. E entregou os ombros à massagem das forças da natureza. E ali deixou-se. Entregue. Não passiva como em toda a sua vida, mas equilibrando-se com toda aquela energia... cinética, térmica, emocional, espiritual, da natureza.
E depois de muito tempo saiu... e, talvez pela primeira vez, viu o horizonte...

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* história fictícia, inspirada na vida e nas paragens observadas.

Junto com os cursos d’água e cachoeiras a cidade de Agudos possui uma flora nativa com floresta de cerrado. A Cachoeira da Glória é particular. Seu acesso é livre por estar à beira da estrada da fazenda. Para chegar, entra-se em Agudos pela entrada principal, seguindo reto até atravessar completamente a zona urbana, sentido Fazenda São Benedito, localizada no quilômetro 5 da SP-273. Em seguida segue-se em frente até acabar o asfalto e continua o percurso na terra até a sede da Fazenda Glória que terá um portal à direita. Quando chegar nesse portal, vira-se à esquerda e segue-se a estrada até chegar numa pequena ponte de madeira que dá acesso à cachoeira. O lugar não possui infraestrutura turística, não é necessário pedir autorização e nem agendamento prévio. É só descer a trilha junto ao rio.

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