Era uma vez certo casal de irmãos. Orgulho dos pais e da cidade onde moravam. Sim, aprontavam lá suas molequices, para as quais todos faziam vistas grossas, afinal eram bons alunos, conseguiam boas notas. Estavam presentes nas mais diversas atividades, das esportivas às culturais, das beneficentes às festivas. Mas eles tinham hábito, um hobby, um gosto, muito peculiar... criavam aranhas caranguejeiras! A maior parte das pessoas mal se atrevia a olhar para os terrários onde elas ficavam, quanto mais se aproximar, chegar perto ou alimentá-las.
Certa vez, ele foi para uma cidade no interior do Amazonas desenvolver um projeto relativo a saúde. Era sua primeira vez na grande selva e o espanto que toda aquela vida lhe causou não foi pequeno. Inúmeros insetos incomuns ao seu habitual olhar atento. Inúmeras aranhas, seja na zona urbana, seja na mata. Inofensivas ou perigosas, pequenas ou grandes. E, finalmente, o encontro com uma caranguejeira! Um espécime bonito! Não se conteve! Seria o presente perfeito para sua irmã! Com muita habilidade capturou-a, ainda era pequena. Com uma garrafa de plástico fez uma pequena acomodação para transporta-la. Sim, ele a trouxe para casa e deu, para enorme felicidade de ambos, para a irmã.
A amazônica aranha logo dominou o terrário em que foi colocada, matou as outras duas que já viviam ali calmamente. Seu apetite era voraz! Uma barata, dada às outras aranhas, passeava por um bom tempo pelo terrário antes de virar alimento para um dia inteiro. Para esta, uma barata não bastava, eram necessárias duas no dia, que tinham mortes rápidas sob sua voracidade. Uma aranha forte, com certos tons de agressividade, construiu uma densa teia por todo o seu espaço.
E cresceu. Essas aranhas podem crescer muito! Bem, a menina, mais nova, talvez ainda não entendesse muito sobre a biologia desses aracnídeos, ou talvez apenas fosse tomada pelo afobamento próprio de sua jovialidade. Espantava-lhe e alegrava-lhe o crescimento de seu animal. Um dia, surpreendeu-se ao acordar e ver que sua aranha tinha feito uma muda. O velho e já pequeno exoesqueleto estava descartado em um canto do terrário. Mais do que rapidamente a voluntariosa menina providenciou um terrário maior.
Sem teia, sem exoesqueleto, sem território, a aranha morreu em meio à confecção de seu novo habitat... exaurida no esforço.
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"É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu
próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante. Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de consistência desestratificando grosseiramente. Por isto encontrava-se desde o início o paradoxo destes corpos lúgubres e esvaziados: eles haviam se esvaziado de seus órgãos ao invés de buscar os pontos nos quais podiam paciente e momentaneamente desfazer esta organização dos órgãos que se chama organismo. Havia mesmo várias maneiras de perder seu CsO, seja por não se chegar a produzi-lo, seja produzindo-o mais ou menos, mas nada se produzindo sobre ele e as intensidades não passando ou se bloqueando. Isso porque o CsO não pára de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera. Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca."
Deleuze,
Gilles, Guattari, Felix. Mil Platôs - Capitalismo e esquizofrenia, vol.3.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
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