19.12.13

Estática

Mais um microconto que tá há meses no forno....

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A televisão já não o satisfazia mais. Todos aqueles programas eram demasiadamente tediosos. Com o controle remoto no braço do sofá, sua mão sem vontade mudava de canal a cada 30 segundos, quase exatamente. Os canais mudavam na velocidade dos pensamentos que atravessavam sua mente, sem se fixar, sem desevolver qualquer ideia ou desejo. Conversava consigo mesmo, repleto de redundâncias, circunvoluções, digressões, esquecimentos e recordações. Como poderia qualquer coisa crescer em tão acidentado e pedregoso terreno?

Desligou a TV e arremessou o controle para o outro lado do sofá. Pura frustração e necessidade de um movimento, pequeno que fosse, mais intenso.
Levantou... andou pela casa... sentou ao computador. Notícias desinteressantes, emails monótonos, facebook entediante, chats sem conteúdo, sem sentido ou sem resposta. Não, nada no computador falava com ele... mesmo assim passou cerca de uma hora olhando para a tela, como se algo fosse pular dela e arranca-lo do torpor de forma brusca!
Mas isso não aconteceu...
Levantou, comeu qualquer coisa...
Sentou.
Levantou, comeu mais alguma coisa...
Sentou.
Levantou e ficou quinze minutos olhando o interior da geladeira cheia sem encontrar nada que preenchesse adequadamente o vazio que sentia no estômago.
E a cada movimento, sentia que seus músculos contraíam mais do que seria necessário. Seus dentes prendiam nada. Sua mente tropessava em pedras ilusórias postas no meio corredor, estava indo para aquele lado ou para o outro? O que estava mesmo indo fazer no banheiro?
Volta pra sala. Sempre gostou muito da varanda e sempre aproveitou-se muito pouco dela. Coloca uma cadeira do lado de fora e abre seu livro favorito. Duas linhas, uma digressão. Uma linha e a atenção presa por um acontecimento trivial na rua. Não é possível!! Duas linhas... mais! Um parágrafo inteiro... o assento já está duro demais. Levanta, abandona o livro no sofá. E volta a andar de um lado para outro da casa.
Não é mais possível ficar por lá. A agitação do seu corpo e da sua mente estão insuportáveis!
Uma guerra! Uma guerra de si com... Com o que? Não é consigo mesmo. Com algo que o aperta de fora. Algo que o pressiona! Que o comprime naquela casca homem, invólucro corpo. A necessidade de provocar uma grande explosão. Correr enlouquecido, nu, por uma rua qualquer. Despir-se de tudo, de qualquer coisa que o esteja apertando. Sente que o estão apertando. E a cada passo escuta as vozes que o massacram. Massacram sua existência e o próprio valor dela.
Sai. Não, não leva documentos... Talvez tenha 10 reais perdidos em um bolso justo do jeans. A chave fica na porta, do lado de fora.
Passos tensos, apressados, percorrendo uma rua agitada, completamente inocente da bomba atômica prestes a explodir. Não, aqueles transeuntes todos que ignoram sua agitação não sabem o risco que estão correndo. Uma fusão nuclear está acontecendo ali e caminha impunemente dentre cidadãos desavisados!
Alguém os avise!
Passos cada vez mais curtos e mais apressados.
A musculatura da coxa não relaxa mais.
A longa e tensa caminhada vai se transformando em corrida.
Os braços vão duros ao longo do corpo. As panturrilhas latejam em um estado pré-cãimbra.
Vai explodir. Vai pifar. Vai colapsar.
Já nem sabe mais para onde está indo. Só vai, frenético. Explorando todo o movimento que seu corpo exige insanamente!
Cada vez mais rápido!
Cada vez mais tenso!
Cada vez mais bruto!
Cada vez mais insensível!
Não sente seu corpo, mas os odores o agridem suas narinas, as cores ferem seus olhos, os barulhos retubam ferozmente em seu tímpano.
Uma estrada? Uma rua deserta? O horizonte se apaga ao longe. Suas pernas obedecem apenas às suas próprias vontades! E agora querem buscar o pote de ouro ali onde o céu faz a curva. E se apressam ainda mais. Ainda é possível ir mais rápido. E o peso do ar, a cruel força da gravidade prejudicam seu andar, mas sente que com só mais um reflexo de seu tórax rijo e determinado e pode estourar qualquer obstáculo à sua frente.
Mais...
E mais...
Corre por aquela via de terra batida, como se deixasse para trás toda aquela dor. Mas seu corpo se exaure, seus joelhos bambeiam e o chão é destino irremediável.
Um corpo torporoso ao chão.
Mais de uma carne tensa e agitada.
Do chão, olha para o céu e sente-se tragado por aquele azul impressionante. Uma sensação tão vívida que quase começa a levitar. Sim, vai se soltar. Vai explodir. Levanta-se e segue andando... com uma sensação estranha. Um peso na mão direita e um latejamento assíncrono, um calor descompassado. Um corte em sua mão deixa escorrer aquele líquido denso, viscoso, quente, rubro... ele escorre lentamente, em um fio, da palma até a ponta de seu dedo médio. E pinga... gota por gota. Uma trilha de sangue. Sua trilha expiatória.
A pressão começa a escorrer. As árvores voltam a ser verdes... não, elas estavam sem cor, até momentos antes elas mal eram notáveis...
Escorre... e goteja.
Pouco a pouco.
Formando uma crosta no leito daquele riacho.
Aquela gota alivia o peso sobre os olhos. Já é possível ver o horizonte.
A outra, encolhe as asas de suas costas, que o obrigavam a voar enlouquecidamente pelo mundo.
Mais uma e o som se apazigua.
Não, não é vermelho. É rubro. É uma cor dura. Sem clemência. Sua imagem ocupa todo o flanco direito da mente. E o lado esquerdo começa a se organizar...
O olhar do mundo sobre aquele lento fluxo interrompe seu falatório caótico e contínuo. Ou a impregnação da imagem de seu próprio sangue na sua mente o ensurdece.
Enfim, o corpo todo se deixar capturar por aquele lento e impressionante fluxo.
O horizonte nubla e tudo se apaga.