17.9.10

Vidas em areias

Partir com o barco dali era bom! Não era difícil arrastá-lo até onde a maré não alcançasse. Também não era difícil arrastá-lo até onde pudesse ir ao sabor das marolas. Tão pouco as ondas praianas dificultavam seu trabalho. Além do que, sempre teve sorte quando navegava paralelamente à costa até aquele ponto e depois avançava mar adentro.
Por isso tudo Francisco foi o primeiro a sair da vila de seus pais para fundar aquele novo lugar. Fundar porque outros vieram depois dele. O ponto em que construiu o casebre não era perto de fonte de água doce boa para beber, mas ainda assim algumas plantas cresciam por ali. Tinha paixão pelo cajueiro que vivia a alguns metros do fundo da casa.
A primeira construção era precária... foi a que o dinheiro deu. Madeira, trocos de árvores, barro, pedras. O telhado era de palha. Chovia pouco por ali. Mesmo quando chovia a palha dava conta de manter as coisas à salvo, poucas gotas escorriam para dentro.
Quando veio o terceiro filho foi preciso aumentar um pouco o casebre. A pesca farta deu dinheiro para que fizesse esse puxadinho com tijolo.
Dizem que fizeram alguma coisa com o mar lá para perto da cidade grande. A pesca rareou. Já eram cinco filhos. Trabalhava tanto que mal lembrava o nome da esposa. Era só "bem", ou "mãe".
Chegava cansado. A casa agora era um tormento. Ia pro centro da nova vila... Ali bebia um pouco de pinga. Depois bebia mais outro pouco. Ah! Tinha uma moça danada de bonita. Devia ter metade da sua idade. Sempre passava se insinuando por ele enquanto bebia ali, sentado debaixo do coqueiro, na frente da igreja.
Seus amigos de trago diziam que ele era doido. Que tava com o diabo no corpo. Todo mundo concordava que a menina era linda. Melhor assim. Burro de carga, mas com bom gosto.
Saía do coqueiro e ia para debaixo do cajueiro (é uma árvore baixa, mas ele limpou um espaço para que pudesse ficar). Olhava abobado aquela casa. Era dele. De dentro saía a esposa dele. Os filhos dele brincavam em volta. Brincavam com a areia. Agora tinha mais areia do que quando a construiu, até sobe as paredes. Eles eram tão inteligentes, tão sabidos.
Tinha preguiça de trocar o teto de palha. Motivo de brigas constantes com a esposa. Mas também para que? Que mal fazia um pouco de areia que caía de noite. Engraçado, não lembrava da areia passar quando fez aquele teto. Nem areia passava!
Sivirino, com quem bebia, reclamava que estava ventando muito. Bobagem! Sempre ventou muito! Por isso foram para ali! Mais vento, melhor para navegar. Mas agora o vento estava machucando mais, tinha muita areia...
Talvez...
Vez por outra o pároco juntava-se a eles. Pinga não era de Deus! Levava uma bolsa de couro com vinho para acompanha-los. Quando alguma crítica mulher temente a Deus passava dizia-lhes que se tratava de água. Estava cansado. Precisava pedir ajuda de mais mulheres para manter a igreja e a sacristia limpas. Principalmente a sacristia, era a pior. Esta ficava aos fundos da quadrangular igreja de alvenaria de torre solitária baixa. Mesma direção da casa de Francisco.
Ah! Aquela moça! Aquele vestido florido (um vestido de chita) dava movimento à sua bunda. Ao seu corpo esculpido e bem recheado. É! Ela olhava para ele! Toda vez.
Aquele dia todos foram embora. Estava muito escuro. Ele ficou bebendo a última dose sozinho. Quando levantou, alguém vinha apressadamente. Era ela! Foi-lhe oferecer companhia. Caminhar ao seu lado. Ela fez pouco caso! Pense! Fazendo charme agora! O vento chicoteou-lhes areia no rosto. Coitada, contorceu a face! Ele pôs-se entre ela e o vento. Cara a cara com aqueles lábios carnudos, aquele doce olhar que fitava envergonhadamente o chão. Não pôde suportar! Beijou-a! E ao beijar lembrou-se do vestido balançando quando andava à luz crepuscular. Levou-a a um canto entre casa e igreja e consumiu-a intensamente enquanto o vento castigava-lhes a pele por inteiro. A areia queria fazer parte da relação e dos corpos. Ao solta-la ela lhe olhou e o deixou confuso. Não sabia o que significava aquele olhar torto. Ela correu embora.
Foi para casa. E não pensava nela. Pensava na areia. Areia nos corpos, areia nos rostos, areia nos corpos, areia no sono, areia na casa. Ao chegar sentou-se do lado de fora e esperou amanhecer, sem tirar os olhos da parede leste. Tinha a impressão que durante a noite toda, de tempos em tempos, alguém saía brevemente da casa pelo o outro lado e voltava. A luz surgia, cristais de areia brilhavam. E que surpresa! Não estavam no chão, já estavam altos encostados à parede.
Escalou um coqueiro. Supresa novamente! O telhado estava coberto de areia! Se aquilo continuasse sua casa não iria suportar!
Correu à cidade, pegou a escada emprestada com o pároco e uma pá com Sivirino.
Quando voltou encontrou esposa e crianças. Estavam parados do lado de fora da casa, curvados, nitidamente cansados. Acordaram várias vezes durante a noite devido à quantidade de areia que caía sobre as camas. Francisco subiu e limpou o teto, enquanto madava a esposa limpar do lado de dentro da casa. Desceu e tirou toda a areia de junto da parede. Quando terminou, percebeu que já havia juntado um pouco mais.
Dias e mais dias... o sono cada vez mais difícil. Cada vez mais areia... seu espaço debaixo do cajueiro já não existia mais. Água com areia, comida com areia, pinga com areia.
Um dia voltou da pesca e encontrou um recado de Sivirino. Ordenou que não fosse à igreja. Iria encontra-lo em casa. Chegando em casa, o cajueiro já estava quase enterrado... as paredes suportavam grande carga de areia. Ao entrar viu suas coisas todas atiradas ao chão, nada das crianças, nada de sua esposa, tudo tinha sido levado. O vento soprou forte. O teto, já curvado, parecia o gargalo de uma ampulheta.
Venta forte de novo. Agora, da casa restam apenas as paredes.

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