18.1.17

Sara arrebentada

Como a maior parte das negras, Sara nasceu pobre, em uma cidade no sul do país. Ainda que pobre, a família conseguia prover a subsistência, os estudos, a comida, o sono. Sara viveu sua puberdade naquele ambiente em que a violência é uma legítima linguagem. A “boca” era a meio quarteirão da escola, o beck, a farinha e a pedra eram fáceis, o tráfico dava as regras. De jovem já se começava, com alguma frequência, a usar em uma praça ali perto. A etiqueta da inclusão em um grupo adolescentil.
O problema dela, naquela época, não foram as drogas, foi a ardência da paixão juvenil, mas foi também o machismo. Ela se apaixonou por um rapaz. Diziam que era um bom rapaz, simpático, educado. E assim era, no começo. Romântico, seduziu-a. Levou-a pela cidade. Bebiam e transavam. Mas as sensações ainda eram poucas. O sangue dele pedia mais intensidade, mais explosão. Começou com um tirinho. Dois, três. Pegava-a com força. O sexo era com força, mesmo quando ela não queria! E para relaxar, para sentir mais, fazia-a cheirar também.
Quando ela engravidou, disse a todos que era uma puta. Sim, Sara era uma puta! Não merecia respeito! Estaria grávida de outro. Jogou-a na sarjeta e sumiu. Sua mãe a acolheu. O dinheiro não dava para a coca, passou a fumar pedra. Parou quando a criança nasceu, ainda era uma boneca para ela, mas era uma boneca que ela amava muito. Precisou largar a escola. No seu bairro seguiu sendo a puta, entrava e saía de casa buscando o trabalho e os olhares tortos a marcavam, denunciavam sua devassidão, mesmo a não cometida. Trabalho? A única chance de uma negra pobre, mãe jovem e solteira, sem estudo, é trabalhar muito e não ganhar nada.
Tão insuportável situação amainou quando outro homem se aproximou. Ele calou, de uma forma ou de outra, a maledicência da vizinhança. Ele também a calou, a puta estava dentro de casa e ele era dono dela agora. Se não era com ofensas, calava-a com tapas. Sara bebia. Um ou outro corote por dia. Era para anestesiar o latejamento dos hematomas do corpo e da alma.
Ela engravidou de novo. Em grávida não se bate. Assim suportou mais 7 meses, entre ofensas e cachaça. O parto doeu como nada! Seu salvo conduto tinha acabado! A dor era tamanha que mal podia escutar o médico mandando-a calar a boca, “para dar não gritou, não é”! O bebê nasceu bem, era um milagre, dizia esse mesmo médico, no dia seguinte.
Mais um ano apanhando… Num dia gritos, noutro tapas. Quando ele cheirava, descia a mão mais pesado. Num dia tapas, noutro pontapés, uma vez usou uma tesoura para fazer pequenos furos. A cicatriz do cigarro apagado em seu nariz ela carrega até hoje.
O bebê não poderia viver ali, a avó ficou com mais esse. Até que o tráfico deu um fim no homem. Só que quando isso aconteceu a bebida já não era mais suficiente para anestesiar, estava fumando pedra de novo. Qualquer um notaria no dedo queimado, nos lábios rachados, nas costelas aparecendo, no olho fundo.
Voltou para a mãe. Doente. Ambas estavam. Encontrou uma porta fechada. Ela não ficaria ali, com as crianças, drogada como era, mulher da vida. A mãe fechou-lhe a porta, não tinha mais saúde para os desvarios da filha, para busca-la na rua. Agora Sara não tinha para onde ir… vagou pelas ruas… por um tempo trocou seu corpo por um teto e umas pedras de crack, apanhava, mas já não era tanto. De um canto a outro ouviu falar de uma cidade, para onde muitas mulheres iam fazer programa, rendia um bom dinheiro. Todas iam e vinham e sempre tinha espaço para mais uma que soubesse fazer bem o trabalho. E ela sabia… há tantos anos…
E foi… e ainda não voltou. Porque lá chegando encontrou bordéis e encontrou dinheiro. Ainda recebia pouco, mas sonhava que em pouco tempo poderia subir umas duas ruas e ganhar umas três vezes mais. Só que assim como pobre não fica rico, puta barata não vira garota de programa. Os homens não a batiam mais, mas a cafetina sim. A mulher, dona do puteiro, ameaçava “suas” meninas. E concretizava cada ameaça! E forçava as meninas a fazerem os programas sem preservativo. E também forçava o aborto. E chegou a vez de Sara. Sara engravidou de novo. E então a chibata cantou. Mas aí que algo de quilombo despertou e Sara revidou.
Mais uma vez estava na rua. Fugiu rápido, pois se ficasse não acordaria no dia seguinte. Cidade grande é bom, porque é só mudar de região para já sumir do mapa. Foi para uma boca, às margens de um córrego. Ali encontrou um senhor que lhe dava um teto ocasionalmente. Mas a vizinhança se perguntava quem era aquela puta craqueira prenha que estava por ali. E logo já não pôde mais ficar ali. Gestante é ruim para os negócios, chama a atenção.
Finalmente encontrou outro rapaz por quem se apaixonou. Apaixonou ou sentiu-se um pouco mais segura? Ele não batia nela. Cuidava dela. Ficava em um buraco de uma estação de trem urbano abandonada. E ali os dois passaram a morar. Ele conseguia comida, cuidava dela, mas o crack era permanente em suas vidas, mesmo não tendo dinheiro. Fumavam juntos e se cuidavam, se protegiam, se respeitavam. Sim, na rua também há cuidado.
Sara, por um momento, encontrou quem cuidasse dela. Um breve momento. Grávida encontraram-na por ali, olharam para ela e insistiram. Apesar de, a essa altura, o crack gritar a uma altura ensurdecedora, e a violência ser um modo de vida, e a rua ser um habitat.
Sara conseguiu sair da rua. Conseguiu não fumar. E por algumas semanas conseguiu se cuidar, se maquiou, comeu, engordou. E voltou para a rua, seu companheiro ainda estava lá, dependia dele tanto quanto do crack.
E quase pariu no buraco. Sara sentiu seu útero contrair, sentiu o líquido escorrer por suas coxas. Sentiu a pressão. Sentiu que ia nascer. Apesar disso, ainda esperou um pouco. Não podia nascer no buraco, mas também não queria ir para o hospital. Fumou uma pedra, criou coragem. A ambulância chegou no exato momento para que ela pudesse chegar ao hospital e lá ter sua bebê em pouco tempo. Foi tão pouco tempo que não precisou escutar os arroubos moralistas de algum médico ou enfermeira babacas. Pensou nisso em meio à última contração, à última força para parir e com um sorriso de canto de boca, "venci", pariu.
E parou de novo. Parou tudo. Largou aquele homem. E prometeu não mais fumar. Queria aquela filha. E queria voltar para a casa da mãe. Esta já tinha dito que a aceitaria de volta com a criança, “limpa”. Mas aí alguma coisa deu errado. "Dinheiro na mão é vendaval". E simplesmente não sabia mais o que podia fazer com um algum dinheiro à disposição. Há muito tempo que tinha pouquíssimas opções, talvez só tivesse uma coisa que soubesse fazer…
Fumou…
Na linha do trem, por onde vagava, uma mulher cuidou de sua filha. Cuidou? Nem Sara sabia direito o que estava fazendo.
Sara já não sabe direito que será de sua filha…
Sara não acredita na Sara. Desde a adolescência. E ninguém acredita na Sara. E agora, Sara está internada… tenta ser menos louca ou mais adequada? Por ali alguéns ainda acreditam nela e quem sabe, em algum momento, ela consiga tentar de novo… ali ou lá…