23.8.11

Ruínas?


Há tempos querendo escrever alguma coisa. Avançando na construção de estados mentais que propiciem tal atividade…
Aí vai um acontecimento que vem retumbando na cabeça…
Na verdade esse texto está pronto faz tempo...

Foram dias sombrios, dias de pouco sol. Nuvens, sombras, chuva. Vez por outra um frágil raio solar dava a esperança de um dia mais contente. De verdade, não havia a menor expectativa que isso acontecesse no espaço de alguns dias. Nada no ar dava a entender isso. Lembro bem de épocas em que passamos semanas sem uma trégua na garoa.
Mas o ar mudou, o vento mudou e, naquele dia, tão aguardado, tão esperado, tão preparado, as nuvens foram varridas. Um inusitado céu azul fez com que respirássemos fundo e pensássemos, cada qual em seu canto da cidade, hoje será um dia especial, um dia-acontecimento!
A despeito dos temores e na alegria das incertezas, foi!
As ruínas, naquela parte alta do bairro, contrastam fortemente com a tarde ensolarada. Paredes quase caídas, grandes muralhas que delimitam um espaço de sobrevivência. Sobre a vivência em um estigma, ou vários. Em preconceitos, em dores, em violências. Os aldeões daquele castelo, ali, estão dentro, apesar de estarem fora de tudo o mais que poderia acolher-los no mundo.
E eis que corpos alienígenas violam a segurança da aldeia. Tem um fora querendo entrar, querendo colocar para dentro. Olhar uma vida que pulsa onde quase todos supõem que ela não exista. Onde há pessoas assustadas, ressentidas, esperançosas, que amam e que odeiam.
O rapazote que recebe aos visitantes com a cara fechada. Não tem porque achar que se levará algo de bom deste inusitado encontro! Seu corpo reage. Violentamente trata os objetos, grosseiramente fala com seus colegas. Xingos, exclusão. Desconfiança.
“Sai daqui muleque burro!”
Mas o sentido daquele momento era outro. Mesmo a repreensão é um convite.
“Opa! Que letra é essa que você tá mandando aí?”
“O quê?”
“Isso aí! Xingando ele, mandando ele embora! Tem disso aqui não! Deixa ele entrar.” E os olhos diziam, “vem, entra você também!”
Desconfiança… atravessando… rodeando… Homens e mulheres, olham de longe uma roda que começa a se formar. Pessoas estranhas, com instrumentos. Delicada sonoridade quase estranha. A roda também é formada com desconfiança. Também corpos acostumados ao preconceito e à exclusão. Alguns sinais produzem algum comum e também o rumor dos guetos que se cruzam. Narizes feridos.
As tintas, as cores, atraem as crianças e logo os jovens. O agressivo rapaz pouco tem a fazer a não ser acompanhar o movimento. Quando chega então uma palavra amiga. Companheira. Vizinhos que até então pouco se olharam e agora se flertam em compaixão e admiração. Uma dupla que não se desfaz até o fim do dia, agressividade transtornada, transformada pelo carinho. Paixão pela vida transborda, a música invade o corpo e de repente o rapazote mostra como o surdo faz-lhe bem ao responder aos carinhos duros de suas mãos já calejadas. Por alguns minutos, capturado pela lógica que deixa a violência de fora, sua mestre, descontraidamente insiste, “olha aí! Você consegue! Manda bem pra caramba! Aparece lá pra tocar com a gente!” POW! Que bolha explode nesse segundo!
A moça declara-se no muro! Seu companheiro pinta um sonho e sobre ele retribui o carinho. Os filhos andam pela terra, comem a terra! Brincam com as tintas, redescobrem as cores, rostos manchados. Mesmo o carinho nessa família é duro. Mas é carinho. Um amor agressivo, a que um olhar pouco atento apreenderia apenas violência e tristeza. Mas há alegria! Vejam que há! O pai briga com a mulher porque o menino desperdiça a tinta e joga o lixo no terreno vizinho, em seguida confessa, não sei fazer diferente! A mãe responde carregando a pobre criança suja pelo braço, seu olhar diz amor, suas mãos provocam dor. Duro paradoxo.
Outro apenas observa o movimento, vê brotar, dentre os seus, alegria que outrora tivera em sua terra. Mal sabe dizer como, mas seus dedos retratam com precisão imagens imaginadas e vividas, de repente vívidas nos muros de uma ruína.
E eis que as tintas invadem o sorriso maroto do homem desprezado até dentre seus pares. Interagir com a pessoa homem é difícil, mas as tintas suavizaram-lhe a expressão e de repente lá está ele pendurado, marcando o mais alto lugar que pudera alcançar! Afirmava vida, afirmava “eu moro aqui”, para quem quer que quisesse enxergar!
Não… ali não havia teto, tão pouco janelas, as portas apenas separavam os quartos improvisados do pátio comunal. Pátio que agora sambava, recheado de outra estima! Alguns dizem que um incêndio levou tudo, outros maledizem ao proprietário, que fracassadamente teria retirado tudo para evitar “invasões”, outros que os próprios moradores teriam arrancado qualquer coisa que pudessem vender (e aí alguns diriam que para comprar comida e outros para comprar drogas). Restaram as paredes.
Pouco me importa os motivos. Sei que naquele dia-acontecimento furamos janelas invisíveis, feitas de aço! Não, não entramos pela porta. Esgueiramo-nos pela fresta aberta e a escancaramos… quiçá tal rombo feito jamais volte a se fechar. Pois ali, vida e dignidade estão explodindo e pedindo passagem.