1.6.18

Casaco vermelho



A cidade em chamas. Grupos rivais disputam o domínio de áreas de tráficos... todos os tipos de tráficos... ônibus incendeiam-se quase expontaneamente, nem sabendo ao certo a quem apoiar. Por que apoiar alguém? É que apoiando ninguém também se está apoiando alguém... e lá vai em chamas mais um ônibus de 42 lugares com acesso adaptado a deficientes. As pessoas amontoam-se nos que ainda circulam, preocupadas a ponto de morte com seus jantares e com a continuidade de suas vidinhas estúpidas. Os que não estão preocupados com isso, estão se corroendo na estupidez de suas impotências diante da grandiosidade do caos e do fogo!
Deixem o fogo e o caos operarem!

Em meio às chamas ele caminhou. Caminhou porque já não havia outra coisa o que fazer. Na crise, as pessoas vão se consumindo no desenfreado medo de já não mais poder consumir e disso nada sobrará. A não ser andar...
E andou.
E andando, escutou vozes do passado, do presente e do futuro, que murmuravam imprecações contra o destino do mundo. E viu sutis cores que bailavam entre frestas de concretos e reflexos de aço. E de uma imagem a outra saltava, em tranquilo passo apocalíptico. Apocalíptico mais porque essa era a sensação generalizada do que porque o modo de vida em que viviam estivesse realmente por acabar... quem dera...

E andando... andando... foi de rua a outra... andando.. chegou àquela mais larga, originalmente das mais movimentadas. Atravessou-a como se pudesse deitar no asfalto, pois nada o assaltaria daquela tranquilidade. Sempre quisera viver o dia em que a Terra parou. Estava próximo disso, mas não ainda. Então três vozes assolaram-lhe o pensamento. Não eram quaisquer três vozes. Eram três pessoas expressando o seu desnorteamento e falando-lhe do que seria um plano evidentemente fracassado... ao menos para aquelas pernas, olhos e ouvidos que já tinham atravessado a fumaça por uma hora.

- Estou indo a pé. Os ônibus não vão parar aqui. Se chegarem...

Seria possível tal caminhada? Seria uma empreitada grande demais?
Não se pergunta a uma centopeia como ela coordena seus 50 pares de pés, mas ali as perguntas já estavam postas. E uma já sabia que aquilo não lhe seria possível. E sim, era visível que não lhe seria. Seus mais de 50 anos, suas 12 horas de trabalho físico, sua má alimentação e seu sobrepeso. Estavam todos estampados e acusando desistência e desolamento em 2 quilômetros de estrada.

- Chamemos um carro então!

Chegaria ele até ali? E em chegando, chegaria ele até o destino? Parece que sim, mas não são tempos de certezas. Certezas? Certezas são tão puerilmente adolescentes...
Fato que o carro chegou e o carro foi com eles.
E no banco de trás sentaram as três mulheres. Na diagonal contrária a mais nova. Trinta anos. Bochechas rosadas. Fala doce e macia, mas enérgica e agitada. Ria com graça e candura etéreas. Seus lisos cabelos negros contrastavam com seus lábios vermelhos combinantes com o casaco vermelho. E as cores bailavam. Sim, elas bailam. Como pode nunca ter notado isso?
E aí, em uma mulher assim, numa situação assim, aquele vermelho vibrou com o coração daquele homem. Que já não sabia o que fazer ou o que falar. Apenas sentir e ouvir. E estimulá-la a falar mais e mais.
Ah! Mas como pode se deixar assaltar por tão intensa ilusão em questão de apenas alguns segundos e meia dúzia de frases. Meia dúzia de frases certas fazem um mundo... (ou o destróem)...
Pode ser com um cantarolar! E ela cantarolou o tema de seu filme favorito! Distraída, pensando na aventrura de chegar até ali. E ambos se identificaram nessas poucas notas. E seus olhares flamejaram! Estaria mais alguém no universo percebendo aquelas intensas faíscas? Ou só uma ilusão semi-psicótica...
Mas ela desceu e nem ao menos disse seu nome a ele... apenas desceu. Seria ela apenas uma sombra de algum dia inusitado que por tempos o assombraria sem adquirir qualquer consistência?

Nunca mais se veriam.

Mas "nunca" contém a eternidade e a eternidade é um tempo longo demais para os acasos da vida e para os calores de uma paixão situacional. E de cerveja em cerveja, de um bar a outro, nos caminhos tortuosos que as reflexões de fim de mundo nos levam, lá estava ela. Mesmo caso vermelho. Mesmo batom vermelho. Mesmas bochechas rosadas. Mesmo sorriso sutilmente enfeitiçador. Mas lá ia ela caminhando de mãos dadas. Outro homem. A ele restou mais um copo de cerveja, para engolir mais um estilhaço de seu coração temperado com toda aquela fumaça do mundo.

No terceiro ou quarto corpo já se perguntava quem era aquela loira que balançava seus cabelos cacheados tão sensualmente...

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