27.9.10

O Velho e o Cigarro

Uma pausa nos textos de influência cearense. Outra hora eles voltam (ou não).


Fazia um ano que o rapaz fumava. Começou com os amigos. Na casa de um, na casa de outro. Foi aprendendo os macetes. Aprendeu a tragar, a enrolar, a disfarçar o cheiro. Por fim começou ele mesmo a comprar. Não sabia de onde vinha. Uma amiga era a intermediária. Não fumava todo dia, mas tinha dia que se fazia útil.
Preferia depois das provas. Quando viaja também levava um pouco escondido. Vários truques. Sempre soava frio, mas achava que valia a pena. Poder fumar contemplando algo esplêndido, não cotidiano. Era literalmente uma viagem.
Também tinham os compromissos familiares. Aí precisava ser muitíssimo cuidadoso. Quase todos eram caretas demais para suportar esse dado de realidade. Seria o caos familiar. Não que as coisas andassem às mil maravilhas e ele fosse estragar tudo. Na verdade estava uma merda e isso seria só mais uma coisinha E até era por isso que se isolava para fumar. Era muito conveniente que a casa seus avós fosse comprida. Vejam não era grande, era comprida. Assim, se isolar no empoeirado quartinho de entulho nos fundos, garantia uma boa distância da sala, com a interposição de algumas paredes e portas. E ainda tinha uma vantagem, tinha uma flor danada de cheirosa naquele quintal!
Iam todo final de semana para a casa dos avós. Seu pai dizia que era aquilo que mantinha a família unida. Seu avô estava sempre carrancudo e mal humorado. Dormia mal, mais apropriadamente, não dormia. Não gostava muito dos remédios que era obrigado a tomar. Anti-hipertensivos, analgésicos e calmantes. De vez em quando chegavam e percebiam que o velho estava dopado, sonolento. Já dava para saber que a semana tinha sido terrível! Isso acontecia quando o casal de idosos brigava muito. Ela, já exausta, colocava um comprimido a mais de calmante na comida dele. Isso lhe dava uma noite (às vezes duas) e um dia de descanso.
Seu núcleo familiar também era conflituoso, mas as coisas pioravam no final de semana.
Todo sábado de tarde deixava as gerações antecessoras degladiando-se na sala e ia para o quartinho dos fundos. Enrolava, acendia, tragava... inalava... não a fumaça, mas tudo... principalmente aquelas flores...
Foi em meio a um transe desses que seu avô chegou. Tinha discutido com a esposa, com o filho, com a nora e saiu batendo porta, já farto da discussão. Afinal quem eles pensavam que eram? Atravessou a casa em seu passo manco, acelerado. Mas as flores giravam e seu arrastar de pés não foi ouvido.
Entrou explosivo no quartinho. Mentecapto! Fumando escondido! Escurraçou-o dali. Que fosse embora rápido, com resto dos parentes ingratos que atormentavam seu fim de vida! O rapaz saiu como um raio, tropeçando e derrubando as coisas. Para trás ficou o cigarro, que havia sido cuidadosamente apoiado no canto de uma mesa antes do repentino rompante cômodo adentro, e a mochila aberta, sobre o mesmo móvel velho de madeira escura.
O cigarro estava aceso. Seu odor agradava às narinas do velho ranzinza. Um cheiro de mato, uma lembrança do cigarro de palha. Quando jovem fumava para espantar os mosquitos que o importunavam enquanto trabalhava no roçado. Carpia satisfeito. Uma lembrança dura mais feliz. Sabia que aquele não era seu cigarro de palha, era molecagem do seu neto. Iria lhe dar um esporro mais severo, mas depois... Ali era ele, o cigarro, o cheiro de terra, de mato verde, de fruta no pé, de namoro na grama. Fumou. E sonhou acordado.
Jantou como fazia tempo não comia. A dor do joelho era mais leve. A esposa chegou ressabiada, não recebeu um carinho expressivo, mas um olhar tranqüilo. Foi suficiente para causar espanto. Ele não esbravejou. Ficou calado. E dormiu. A noite inteira.
Ao acordar a dor tinha piorado um pouco, mas conversava amenidades, era quase carinhoso. Voltou no quartinho. Nem mesmo com um neto se fazia isso, mas vasculhou a mochila dele, estava aberta ali mesmo. Encontrou uma bolsinha, dentro dela um pequeno frasco de perfume e um tijolinho de mato prensado. Confiscado para fins terapêuticos.
Isso já faz uns 5 ou 10 anos. O velho já passa dos meados de sua oitava década de vida. Parece bem disposto, parou de brigar com a esposa, ganhou peso e voltou a se cuidar. Fuma a cada dois ou três dias. Fez uma horta, com alguns fitoterápicos, esse está escondido ali no meio. Do neto não sei, mas parece que parou de fumar depois do esporro do avô. Ser chamado de "mentecapto" pelo rabugento parece ter-lhe causado um efeito devastador.


Sim! Esse texto é politicamente incorreto! Não, não é uma apologia a nada! Trata-se de algo que aconteceu, acontece, ou acontecerá, assim ou de outra maneira. Enfim... vida real. Moralistas to dispensando viu...

23.9.10

Casco e pôr-do-sol

Aquelas dunas já são mais antigas. Estão ali desde a sua meninice. Raras vezes ia de Jijoca até lá quando era criança. Agora vai todo dia. Vender coco, água, cerveja, refrigerante dão mais dinheiro e são mais interessantes do que caçar caranguejo no mangue.
Enquanto sobe a duna velozmente, lembra do quanto já teve a mão pega pelas patolas dos caranguejos. Vez por outra infeccionava. Também não queria que seus filhos crescessem na lama. Lama suja. Lama pobre. Lama de fome. Lama burra.
Um monte de gente estranha. Todos vem de longe. Alguns de muito longe. Gringos, é como os chamam. Um paulista uma vez o ensinou a falar algumas palavras em inglês. Ajudou demais. Agora até inglês falava!
Quatro horas da tarde quando começa a atravessar aquelas dunas. Dunas que são antigas. Dunas que já tem um mato, uma grama. E muitos espinhos. Lembra algum cenário desértico. Se fossem apenas os cactos estava bom, mas mesmo essa grama tinha espinhos. E ele sobe as dunas descalso! Não é um espanto? Simplesmente ignora a agressividade da natureza.
Sobe acompanhando uma manada de turistas. Branquelos. Com suas máquinas fotográficas poderosas. Chinelos. Tênis? Ainda assim mal conseguem subir, chegam ao topo esbaforidos. E depois, descem quase rolando. Chapéus e protetores solares. No fim da tarde?
Eles estão suando. Quase não suportam o calor e o sol, mesmo com o vento forte refrescando as sensações.
Já ele sobe pisando em espinhos, descalço. Face inalterada. O esforço da subida não muda sua expressão, tão pouco o fato de estar carrendo uma geladeira de isopor carregada de bebidas e gelo. E o sol? Aquele grande disco dourado. A estrela principal dos finais de tarde por ali. Para ele é um ator. Os turistas os coadjuvantes. Ele o espectador.
Pára junto à pedra furada. Não sabe o que os turistas veem de tão espetacular nela. Uma pedra. Em formato peculiar, é verdade. Mas uma pedra, como todas as outras que ali estão. Milhares delas. De toda forma é uma composição espetacular. E naquele meio ele transita leve, desapercebidamente. Suavemente oferece suas bebidas aos turistas. É a hora de ganhar o pão das crianças, cobra o dobro mesmo e todos eles têm dinheiro para pagar. De toda forma, não lhe cabe estragar a paisagem. Fica ao canto.
Hora de subir. Nos últimos minutos o vento fica mais forte na beira-mar. A areia machuca a frágil pele daquelas pessoas. Além disso o espetáculo é mais grandioso lá de cima.
É tudo por aquele momento. O sol causticante vai descendo. O mar o aguarda ansioso. Será sua morada pelas próximas 12 horas. Não é mais hora de vender cerveja. É hora de sentar e admirar. Senta em uma pedra, dobra as pernas expondo a grossíssima sola de seus pés. Um casco. Hipnotiza-se por alguns momentos. O verde azulado do mar, o laranja crepuscular, o azul-negro do céu.
Quando sai do transe percebe que quase todos já foram.
"Ei! Esperem! Nem esperam o sol se pôr!" Mas ele já se foi diriam alguns. E pensaram assim, aquela manada toda. Ele não. Ele sabe. Senta e espera. Como que por mágica o céu é inteiro pintado. São dezenas de tons de amarelo, laranja, vermelho e azul. Turistas burros.
Pacto refeito. Reverencia a natureza, ela recebe turistas tolos e estes dão-lhe o pão.

17.9.10

Vidas em areias

Partir com o barco dali era bom! Não era difícil arrastá-lo até onde a maré não alcançasse. Também não era difícil arrastá-lo até onde pudesse ir ao sabor das marolas. Tão pouco as ondas praianas dificultavam seu trabalho. Além do que, sempre teve sorte quando navegava paralelamente à costa até aquele ponto e depois avançava mar adentro.
Por isso tudo Francisco foi o primeiro a sair da vila de seus pais para fundar aquele novo lugar. Fundar porque outros vieram depois dele. O ponto em que construiu o casebre não era perto de fonte de água doce boa para beber, mas ainda assim algumas plantas cresciam por ali. Tinha paixão pelo cajueiro que vivia a alguns metros do fundo da casa.
A primeira construção era precária... foi a que o dinheiro deu. Madeira, trocos de árvores, barro, pedras. O telhado era de palha. Chovia pouco por ali. Mesmo quando chovia a palha dava conta de manter as coisas à salvo, poucas gotas escorriam para dentro.
Quando veio o terceiro filho foi preciso aumentar um pouco o casebre. A pesca farta deu dinheiro para que fizesse esse puxadinho com tijolo.
Dizem que fizeram alguma coisa com o mar lá para perto da cidade grande. A pesca rareou. Já eram cinco filhos. Trabalhava tanto que mal lembrava o nome da esposa. Era só "bem", ou "mãe".
Chegava cansado. A casa agora era um tormento. Ia pro centro da nova vila... Ali bebia um pouco de pinga. Depois bebia mais outro pouco. Ah! Tinha uma moça danada de bonita. Devia ter metade da sua idade. Sempre passava se insinuando por ele enquanto bebia ali, sentado debaixo do coqueiro, na frente da igreja.
Seus amigos de trago diziam que ele era doido. Que tava com o diabo no corpo. Todo mundo concordava que a menina era linda. Melhor assim. Burro de carga, mas com bom gosto.
Saía do coqueiro e ia para debaixo do cajueiro (é uma árvore baixa, mas ele limpou um espaço para que pudesse ficar). Olhava abobado aquela casa. Era dele. De dentro saía a esposa dele. Os filhos dele brincavam em volta. Brincavam com a areia. Agora tinha mais areia do que quando a construiu, até sobe as paredes. Eles eram tão inteligentes, tão sabidos.
Tinha preguiça de trocar o teto de palha. Motivo de brigas constantes com a esposa. Mas também para que? Que mal fazia um pouco de areia que caía de noite. Engraçado, não lembrava da areia passar quando fez aquele teto. Nem areia passava!
Sivirino, com quem bebia, reclamava que estava ventando muito. Bobagem! Sempre ventou muito! Por isso foram para ali! Mais vento, melhor para navegar. Mas agora o vento estava machucando mais, tinha muita areia...
Talvez...
Vez por outra o pároco juntava-se a eles. Pinga não era de Deus! Levava uma bolsa de couro com vinho para acompanha-los. Quando alguma crítica mulher temente a Deus passava dizia-lhes que se tratava de água. Estava cansado. Precisava pedir ajuda de mais mulheres para manter a igreja e a sacristia limpas. Principalmente a sacristia, era a pior. Esta ficava aos fundos da quadrangular igreja de alvenaria de torre solitária baixa. Mesma direção da casa de Francisco.
Ah! Aquela moça! Aquele vestido florido (um vestido de chita) dava movimento à sua bunda. Ao seu corpo esculpido e bem recheado. É! Ela olhava para ele! Toda vez.
Aquele dia todos foram embora. Estava muito escuro. Ele ficou bebendo a última dose sozinho. Quando levantou, alguém vinha apressadamente. Era ela! Foi-lhe oferecer companhia. Caminhar ao seu lado. Ela fez pouco caso! Pense! Fazendo charme agora! O vento chicoteou-lhes areia no rosto. Coitada, contorceu a face! Ele pôs-se entre ela e o vento. Cara a cara com aqueles lábios carnudos, aquele doce olhar que fitava envergonhadamente o chão. Não pôde suportar! Beijou-a! E ao beijar lembrou-se do vestido balançando quando andava à luz crepuscular. Levou-a a um canto entre casa e igreja e consumiu-a intensamente enquanto o vento castigava-lhes a pele por inteiro. A areia queria fazer parte da relação e dos corpos. Ao solta-la ela lhe olhou e o deixou confuso. Não sabia o que significava aquele olhar torto. Ela correu embora.
Foi para casa. E não pensava nela. Pensava na areia. Areia nos corpos, areia nos rostos, areia nos corpos, areia no sono, areia na casa. Ao chegar sentou-se do lado de fora e esperou amanhecer, sem tirar os olhos da parede leste. Tinha a impressão que durante a noite toda, de tempos em tempos, alguém saía brevemente da casa pelo o outro lado e voltava. A luz surgia, cristais de areia brilhavam. E que surpresa! Não estavam no chão, já estavam altos encostados à parede.
Escalou um coqueiro. Supresa novamente! O telhado estava coberto de areia! Se aquilo continuasse sua casa não iria suportar!
Correu à cidade, pegou a escada emprestada com o pároco e uma pá com Sivirino.
Quando voltou encontrou esposa e crianças. Estavam parados do lado de fora da casa, curvados, nitidamente cansados. Acordaram várias vezes durante a noite devido à quantidade de areia que caía sobre as camas. Francisco subiu e limpou o teto, enquanto madava a esposa limpar do lado de dentro da casa. Desceu e tirou toda a areia de junto da parede. Quando terminou, percebeu que já havia juntado um pouco mais.
Dias e mais dias... o sono cada vez mais difícil. Cada vez mais areia... seu espaço debaixo do cajueiro já não existia mais. Água com areia, comida com areia, pinga com areia.
Um dia voltou da pesca e encontrou um recado de Sivirino. Ordenou que não fosse à igreja. Iria encontra-lo em casa. Chegando em casa, o cajueiro já estava quase enterrado... as paredes suportavam grande carga de areia. Ao entrar viu suas coisas todas atiradas ao chão, nada das crianças, nada de sua esposa, tudo tinha sido levado. O vento soprou forte. O teto, já curvado, parecia o gargalo de uma ampulheta.
Venta forte de novo. Agora, da casa restam apenas as paredes.

14.9.10

Duna Encantada

Ninguém sabe como aquela vila foi parar ali. Como ela se formou? Quem foram seus primeiros moradores? Porque foram para lá e como pararam ali? Nem os mais velhos sabem direito. Tem só algumas hipóteses.
Sabe-se que apesar das algumas dezenas de casas, são apenas duas ou três famílias. Antes era uma só. Mas teve um povo que fugiu da seca no sertão e parou por ali. Ainda assim as famílias se misturavam.
Sabe-se também de onde veio Antônio Pedro. Seu pai era um dos pescadores. Acordava no meio da noite. Saía rápido para aproveitar o vento da madrugada. Voltava no fim da tarde. Sua mãe acompanhava o ritmo. Acordava ainda mais cedo. Preparava umas cacimbas com água, carne de coco... quando os tempos eram bons, às vezes até um pouco de carne de sol. As vacas viviam nos morros verdes próximos.
Tudo na casa existia por causa de sua mãe. Engravidou dele ainda jovem. O casal tinha aquela rotina fazia só um ano. Sua mãe quis chama-lo de Antônio, como o pai. Talvez fosse para sentir o marido mais próximo no dia a dia.
A circunstância do nascimento foi inusitada. Naquela época do ano a água doce próxima da vila ficava salgada. Precisavam buscar água nas lagoas mais no interior. Era preciso caminhar entre as dunas. As vezes os jumentos ajudavam. Certo dia, já tinha feito todo esse caminho. Estava à beira do lago enchendo as cacimbas maiores que tinha. Então Antônio começou a nascer. Suas águas desceram. A dor veio forte, aumentava de força e freqüência em pouco tempo. As outras mulheres que estavam perto acharam que não seria possível voltar com ela assim. Era melhor que a criança nascesse ali do que corresse o risco de nascer no meio da areia branca.
Pobre mulher. Em toda a sua força feminina suportou corajosamente a situação, mas não era capaz de permanecer de pé, ou de cócoras. Sentou sobre uma pedra que lhe fornecia perfeito apoio. Sua vizinha ajudou o parto.Sua avó, que era anciã muito respeitada, dizem que neta de um pajé muito poderoso dos antigamente, disse que o menino recém-nascido deveria ter em seu nome uma homenagem à difícil condição em que foi parido. Assim virou Pedro.
E vale a pena contar essa história pois não foi por causa dela que o lago passou a ser conhecido por lago do amor? E na época das chuvas era possível ir de barco até ele. E às vezes até barcos da capital chegavam por ali e iam até lá. Queriam vender e comprar. Ninguém entendia por davam tanto valor às roupas e toalhas que as mulheres teciam. Eram tão pobres, no comércio acabavam sendo vendidas por quase nada. Alguns voltavam sempre. Alguns até mesmo dormiam por na praia, acampavam e passavam dias. Iam embora e quando voltavam traziam mais uma ou outra pessoa.
Um ano o rio secou totalmente. Sobrou só o lago e a vala que conduzia sua água.
Naquele ano a chuva foi pouca. O rio não voltou. As mulheres iam todo dia até ele. Preocupadas. No outro ano a mesma coisa. As mulheres sentaram ao leito do rio e choraram. A estação de chuvas acabou de novo, o rio não encheu, os barcos não passavam mais e o lago ia secando.
A mãe de Antônio Pedro sempre o levava lá. Ele adorava ouvir a história de quando nasceu na pedra.O lago secou... os rios minguaram. A lama endureceu e até caçar caranguejo era difícil. Os cajueiros morreram, nada que plantava vingava. O gado emagrecia. Nem valia sacrificar os pobres bichos. Não tinham carne. Nem as vacas, nem os bodes, nem os jumentos. Sobrou apenas peixe e macaxeira.
As crianças adoeceram. Antônio, que não era rocha, sofreu e adoeceu. A vila sofreu. Mas ele queria comer e queria ouvir a história de quando nasceu, mas queria ouvir sentado na pedra. Se comida estava difícil naqueles tempos, sua mãe o pôs em um jumento e o levou até lá. Algumas mulheres foram junto. Dizem que a dita anciã, que há anos não saía da vila, foi também.
Ventava areia. A terra se mexia. As dunas se mexiam. Todas sentaram em roda em volta da pedra. O menino deitou ao lado dela. Ouviu a história, fechou os olhos olhando para um barco encalhado ali perto. Nunca mais os abriu.
Diz-se que elas colocaram o menino no barco. Diz-se que nunca mais se disse nada sobre Antônio. Alguém falou que Pedro se fez pedra. Talvez tenha sido a anciã. No ano seguinte choveu bastante. O rio voltou fino e desviou do lago, lá já tinham montes de areia e um barco encalhado. Ninguém mais sabe do barco encalhado. Certa senhora conta que tem uma duna que é encantada. Alguém diz que dentro dela tem um barco, mas ninguém mais diz de onde vem a pedra que segurou a areia ali. Sabe-se só que vultos de mulheres e uma criança passeiam por ela à noite.

10.9.10

Viajando...

Esse texto será distinto dos demais. Deve inaugurar, introduzir ou contextualizar uma série de textos ou cenas que se pretendem vir a seguir.
Fui parar no Ceará no começo desse mês. Antes do trabalho, muito justo um tempo para um descanso. Jericoacoara, terra dos ventos, vila de pescadores e... de kite e windsurf, restaurantes caros com cara simplicidade e pousadas que buscam reforçar o estilo de simplicidade e rusticidade praiana.

Para ir toma-se um transporte de Fortaleza pra Jijoca. Ônibus, vans, micro-ônibus. A cidade tem toda a simplicidade do interior do nordeste. A maior parte das casas é pequena, pintadas a uma só cor, nunca iguais dentre as vizinhas. A prefeitura pouco difere das outras casas, é maior, mas tem seu pequeno quintal com coqueiros. O hospital ou serviço de saúde local é igualmente de teto baixo, pintura pastel desgastada, diversas rachaduras nas paredes, algumas com remendos sem tintas. Com um grande contraste, ao lado deste equipamento social, o poder público se expressa no prédio da Câmara de Vereadores. É o único com generoso pé-direito, igualmente quadrangular como todas as outras construções, pintura nova. Nova também são as letras pintadas que identificam o edifício, serviço malfeito, cujas cores despegaram um pouco e mancharam a parede abaixo.
O acesso à vila só é possível sobre veículos com tração nas quatro rodas e os transportes coletivos são caminhões e caminhonetes adaptados. As caçambas são equipadas com banquinhos de madeira com algum estofamento. De madeira também são as coberturas, cujo aperto dos parafusos não são suficientes para impedir que balancem fortemente aos trancos dos buracos, areias e dunas.
A estrada de terra atravessa vilarejos de casas baixas, mal construídas, algumas abandonadas inacabadas e vegetação de arbustos, tingidos de areia vermelha, ora meio secos ora de copas verdes vívidas. Repentinamente a estrada de terra vermelha dá lugar à areia branca, em quantidade cada vez maior. Quando percebemos saímos do meio da vegetação para trafegar entre enormes morros de areias ondulantes, móveis, mutáveis.
A paisagem muitas vezes lembra um deserto, mas tem beleza indescritível. Beleza que se repete e se aprofunda nos passeios realizados nos dias subseqüentes.
O cotidiano da antiga vila de pescadores de Jericoacoara é surpreendente. A partir de umas 9:00 legiões de bugues se movimentam para levar os turistas para passeios a leste e a oeste da vila. O almoço já acontece no meio da tarde. No final da tarde acontecem promissões para admirar o espetacular pôr-do-sol a partir da Duna do Pôr-do-sol ou da Pedra Furada. No começo da noite a vila está marasmática. Todos dormindo? Não! Eis que pelas 22:00 os restaurantes estão lotados... E então... existem baladas, casas de música eletrônica, forró e reggae. Movimento? Só lá pelas 2:00 da manhã!Onde foram parar aqueles pescadores de vida pacata que dormem ao crepúsculo e acordam no começo da madrugada para avançar sobre o mar?
Alguns encontros foram marcantes, incomodaram e vão mobilizar algumas histórias. A visita à Velha Tatajuba enterrada pelas dunas cuja história é contada (ou seria vendida) pela anciã Dona Delmira. Aguardando o sol cair, em meio a muitos turistas e chicotes de vento com areia uma amiga de tempos antigos! Encontro inesperadamente inusitado. Eis que essa conta uma conversa com alguns estrangeiros recém-conhecidos. Falavam sobre as belezas do lugar e comentava-se que havia muitos turistas e moradores estrangeiros por ali. Ao que uma das pessoas interpela-a: “É! Aqui tem mais estrangeiro que brasileiro! Então a gringa aqui é você!” Exageros dele a parte, ela brilhantemente responde: “Devagar aí! Isso aqui é NOSSO!”.
E aí caiu a ficha! Paulistas, cariocas e estrangeiros eram os donos de tudo o que acontece em Jericoacoara. O esporte mais praticado na região o é por estrangeiros, uma aula custa mais de R$150,00. Um jantar pode variar de 20 a 60 ou até R$100,00. A estadia nas pousadas por uma média que R$80,00 por dia por pessoa.
E os pescadores e suas famílias? Trocaram a dependência dos compradores de sua pesca pelos empregos, muitas vezes não formais, subordinados a pessoas estranhas à sua terra e aos seus costumes e frequentemente até mesmo aos seus idiomas. Faxineiras, bugueiros, vendedores de artesanato (diga-se de passagem, obras que poderiam ser vendidas por uma centena de reais em São Paulo mal se consegue que sejam compradas por uma dezena), de coco, capturadores de cavalos-marinheiros para exibição, remadores de balsas, vigias.A condição de vida de muitas famílias melhorou? É quase indiscutível. Em compensação a desigualdade social vai a níveis estratosféricos, uma faixa de marginalidade cresce, meninos pedem dinheiro nos lugares onde os bugues precisam parar ou reduzir a velocidade para passar. E quem manda, no fim, são os gringos.
É o neocolonialismo... não se faz com exércitos, se faz com aculturação e submissão social e financeira.