29.10.10

Rapa da minha área!

Estavam os quatro jovens ali, comemorando. Não vem bem ao caso o que, não é disso que se trata. Fato foi que foram a um mercado, compraram uma bebida forte e barata, sentaram naquelas cadeiras de ferro, pintadas em branco, com diversos pontos de ferrugem, assim como a mesa. Pediram uma porção de torresmo. Não podia ter cardápio mais insalubre. E estavam os quatro ali bebemorando algo.
Dois homens, um com cabelos compridos lisos, densos, ásperos, rosto oval, porte atlético com uma pequena barriga. O outro mais alto, cabelos não tão compridos, mais volumosos, ameaçando cachear. Ambos riam soltamente. Duas mulheres, da mesma altura, ou próximas. Uma de cabelos muito longos, muito cacheados, de roupas tão fechadas quanto sua risada contagiava e ecoava no ar. Tantos gargalhos por causa da quarta personagem. A moça de rabo de cavalo, castanho, sem dúvida não era sedentária, mas talvez os risos que provocava que a mantinham em forma também!
Ela falava alto, articuladamente. Piadas? Não! Histórias! Sempre inéditas, construídas ali, na hora. Sem dúvida que já tinham seus construtos pré-prontos, mas qual incorporava naquela noite era peculiar! Uma sátira histórica, um francês, judeu, de educação nazista. Não era falta de respeito com a história ou com o sofrimento alheio, apenas a expressão de uma mente criativa em uma cena inusitada.
- No sê o que facer – dizia – Mamã e judii, papá e nascista! Malllditos nascitas! Malllditos rudeus!!
Enquanto as reflexões daquele ser em crise se desenrolavam, o assunto chamava a atenção da mesa ao lado. Um homem negro, não lembro muito bem dele, porque em certo momento ele desapareceu e não teve influência nenhuma no que se desenrolou em seguida. Uma mulher, deveria ter seus trinta e tantos anos, já estava bêbada, conversava já desarticuladamente. Não havia ninguém sóbrio naquele lugar? Franzina, cabelos curtos, face emagrecida. Olhos negros perdidos que passaram a fintar aquele grupo inusitado conversando. Seria impossível sequer supor o que se passava naquela mente alcoolicamente transtornada.
De repente ela se levanta, caminha lentamente para a mesa ao lado, abaixa-se de cócoras à quina da mesa, entre duas das cadeiras. O grupo silencia. Ela põe a mão na mesa, apoia o queixo fino na mão magra, acena um sim com a cabeça e erguendo do dedo indicador direito diz, vagarosamente:
- Vocês estão falando da minha vida... - fica em silêncio um tempo. Acena outro sim com a cabeça e repete: - Vocês estão falando da minha vida.
Põe a mão no queixo e a retira com força, levantando em seguida e voltando ao seu próprio copo, na mesa ao lado. Os quatro se entreolharam, levantaram sombrancelhas, viraram mãos, com faces de “o que foi isso?” e girando os dedos na cabeça, como quem diziam “louca coitada!” Um dos rapazes acena desdém e eles continuam a conversa totalmente non sense.
Então, finalmente, o álcool acabou, a porção de torresmo acabou, sendo o dinheiro suficiente apenas para pagá-la. Os quatro devidamente bêbados, diriam que teria sido festa digna, extremamente divertida! O rapaz dos cabelos lisos recolheu as moedas e foi pagar o aperitivo. Assisti de camarote! A moça magra levantou-se de um salto e chutou o bunda deste moço quando o mesmo voltava a seus amigos. Não pareceu ter doído, mas ele virou-se totalmente sem reação, sem entender o que estava acontecendo, etilicamente letárgico. Os três companheiros de copo levantaram-se. A mulher gritava:
- Rapa da minha área! RAPA DA MINHA ÁREA!
A moça de rabo-de-cavalo foi confrontá-la.
- Que foi? Essa praça não é sua não!
- Filha da puta!
- Filha da puta é (pausa) a SENHORA!
Singular! O rapaz de cabelo-quase-cacheado interpôs-se entre ambas no momento em que iriam começar a se bater. Com a mão no tórax de cada uma via as duas debaterem-se em palavrões! Uma com um linguajar repleto de gírias, a outra quase formal. Enquanto isso a outra moça estava no chão, sentada, rindo tanto que simplesmente não conseguia reagir a nada. Quase rolava de rir. O chutado fazia posições marciais, embriagado demais para tomar alguma atitude! A cena surreal pareceu durar uns 5 minutos!
- Vagabunda!!
- Vagabunda é a senhora TUA MÃE! Deixa ela comigo! Vou te quebrar!!!
- Cara, tira as meninas daqui!!
- U! Uh!
- CARA! Se mexe PORRA!
- U! Uh!
- FILHA DA PUTA!
- Levanta sua loca!
- (gargalhadas) Nã...o com...sigo... (gargalhadas). Minha... barrrrriga dóóóiiii (gargalhadas)
Quatro ou cinco outras pessoas assistiam perplexas, igualmente imóveis!
A distância entre as duas combatentes já era quase nula, quando finalmente chegou uma senhora e carregou a magra embora. Ninguém viu para onde. A cena destencionou-se de súbito, os quatro gritavam uns com os outros e davam risadas.
- O que foi isso?
- O que foi isso?
Sentindo o momento mais tranquilo foram rápido para o carro. Pareciam levemente assustados apesar da comicidade da situação. Um pressionava para que os outros agilizassem-se. Quando estavam entrando no carro a mulher aparece novamente. Na janela de uma casa ao lado da praça. Parecia um leão enjaulado. Eles entraram como um raio no carro e sumiram!

18.10.10

Desconfiança do Vazio 2

Injustiça fazer meus raríssimos leitores esperarem mais de uma semana para o término de um continho de nada... Desculpem. Quem dera eu ter o talento e a oportunidade de viver apenas do escrever. Atividade ingratamente reconhecida nessa país... Bem, quando o trabalho e a pós permitirem volto com mais alguma coisa. Espero não demorar uma semana novamente.


Nada neste saguão de entrada. As únicas cores eram as dos vitrais da porta de entrada. Corredores vazios. Um para frente, um para cada lado. Bloqueados por portas de madeira, pintadas de branco, pareciam ser de compensado. Droga. Deve ser para frente. Agora penso, porque raios achei que era para frente?
A porta estava aberta. Outro corredor. Branco. Portas nas duas paredes, várias, indistintas. Um homem de feições emagrecidas estava sentado em um banco de madeira, tipo de praça de cidade pequena. Seu tronco balançava para frente e para trás. Cabelos raspados, cuja aspereza de seu crescimento relevava uma meia idade grisalha. Pois, não tivesse visto isso, arriscaria dizer ter idade para uma cabeleira inteiramente alva.
- Senhor?
Ele continuou balançando.
- Senhor? - encontei-lhe no ombro.
Parou por alguns segundos. Ergueu os olhos. Quase caí de costas. Era um olhar tão vazio! Tão vazio! Por um momento senti que mergulharia nele, ou seria tragado para dentro. Afastei-me. Ele continuou a balançar.
Por de trás de algumas portas ouvia batidas, gemidos, às vezes gritos. Um homem passou por mim. Carregava baldes. Tentei falar-lhe, não deu tempo. Parece nem ter notado minha presença.
Ao atravessar a porta seguinte (semelhante à anterior) saí em um grande salão. Algumas pessoas andavam aleatoriamente, arrastando os pés, quietas, outras falavam sozinhas. Alguns assistiam televisão. Outros estavam sentados a mesas. Um parecia jogar damas sozinho. Sim! Quatro pessoas de jaleco branco. Deviam ser funcinários. Eles me ajudariam, sem dúvidas. Dois estavam sentados a um balcão olhando para o nada, uma estava à janela, olhava para algo do lado de fora (será que procurava o nada que não habitava ali?), outro folheava uma revista (no máximo estaria olhando para as figuras)
Quando dei dois passos para dentro um homem começou a gritar.
- Quero cigarro!
Algo ainda existia ali dentro dele! O cigarro!
- Quero MEU cigarro!
Um enfermeiro levantou-se e a enfermeira atentou-se. Ambos foram na direção do rapaz. Altura mediana. Cabelos muitos pretos, revoltos. Barba bem aparada. Rosto quadrado. Descrição toda que compunha de forma estranha com aquela bata de interno que estava usando, sobrecimada por uma jaqueta preta.
Quando os dois se aproximavam, ele subiu no sofá, espantou outros pacientes. Olhou na minha direção. Olhar profundo. Decidido? Esperançoso? De socorro? Pulou por cima da mobília no momento exato em que seria apanhado. Correu pela sala derrubando pacientes, cadeiras. De repente estava sobre mim. Segurou-me pelo colarinho, quase ergueu-me e gritou:
- DÁ MEU CIGARRO! POR FAVOR!
No momento seguinte eu era puxado pela frente. Não dava para entender muito bem o que estava acontecendo. Ele se debatia. Uma mão não largava minha camisa. Segurou-a com intensa força, enquanto era puxado para trás por dois homens de branco. Ao tentar se libertar dos homens segurou-me nos ombros. Por um segundo olhou-me dentro dos olhos. Desespero! Meu? Dele? Atrás da retina havia algo além do vácuo! Cada um foi puxado para um lado. Dois botões da camisa arrebetaram. A mão dele escorregou e no que se corpo oscilou para trás, seu braço foi pego por um homem, que imediatamente injetou-lhe algo. Ainda pude ver o sangue escorrer-lhe antes de o levarem para o outro lado da sala e sumirem por uma porta enquanto eu ofegava, tentava recompor minha roupa e alguém tentava acalmar-me, desculpar-se, com uma mão em minhas costas e a outra em meu braço.
Aqueles olhos negros impregnaram-se em minha córnea! Não vi para onde fui conduzido. Apenas vi que fui colocado sentado em um poltrona confortável. Dada-me água com açúcar. Na minha frente uma moça, formalmente vestida.
- Apenas queria entregar isso.
Entreguei o envelope. Ela o abriu, viu do que se tratava (o que seria?) e agradeceu. Pedi pela saída. Ela indicou-me, oferecendo-me milhões de desculpas etc. Andei por um corredor, no qual passei pela porta em que entrei. O homem com os baldes trancava a porta de vitrais. Ao terminar o corredor saí na recepção, cuja porta de entrada era na lateral do prédio mais próxima da guarita.
Bom... foi assim que conheci aquele prédio. Não entro mais lá nem por pagamento. É impressionante como é tudo vazio. A grana, as paredes, os pacientes, os funcionários.... Vazio.... Mas naquele homem, naquele que entrou em minha alma, talvez para que eu visse a dele, nele havia algo trancado lá dentro, pedindo para sair.
- Impressionante. Realmente acho que não se trata alguém trancafiando assim.
- É! Chegamos.
- Quanto ficou?
- Vinte e sete. Pode dar esses vinte e cinco, está ótimo. Boa viagem apra o senhor.
- Obrigado. Tudo de bom para o senhor. Ah! Cobrou essa bagunça daquela a quem fez o favor?
- Estou indo lá agora... vai ficar um pouco caro! Se é quem me entende...
- Ah! Ok! Boa sorte.

8.10.10

Desconfiança do Vazio

bom... semana muitíssimo conturbada, indo de excesso de trabalho até destruição de um teclado de R$300,00!!! É de chorar!!



Não sei porque justamente eu tinha que ir àquele lugar. Ele é estranho. Dizem que mal-assombrado. Isso é uma bobagem, mas é verdade que paira algo muito anormal ali. Passei com o táxi na frente pela manhã. Que imagem! Um prédio com altura para uns 4 ou 5 andares, mas parecia ter apenas dois. Seis pavilhões interligados pelo o que parecia ser um corredor. Fachada de construção antiga, pintura velha, desgastada, manchada, mal-cuidada. Na frente um comprido jardim, com grama e um ou outro arbusto. Nenhuma pessoa. Vazio. De fora só é possível ver o guarda que regula a entrada de carros, mais ninguém.
Teria que levar o documento para lá pela tarde. Passei o dia pensando naquele lugar. Nas pessoas que lá estavam internadas. Como seriam? Loucas, é o que dizem. Devem até ser perigosas! Para ficarem trancadas assim... Nunca conheci alguém que tenha trabalhado em um lugar assim, ou sido internado. Será que alguém sai de lá?
Almocei distraído. Sem perceber direito o que comia. João estava comigo.
- Bah, onde tu tá hoje?
- Perdido... tenho que levar um documento naquele hospital
- O de gente doida?
- Esse...
- Bah...
- O quê?
- Eu não iria lá não.
- Ahn? Por quê?
- Tchê! Parece que não sabe! Tem uns guris perigosos por lá! Doidos! E se eles resolvem te pegar?
- Quem resolve me pegar? Tu que tá louco!
- Os doidinhos ué!
- Eles ficam trancados lá?
- Não sei! Talvez seja o mais seguro a fazer!
- Mas aí como é que melhora trancado?
- E tem jeito de melhorar?
- Deve ter né! Ninguém fica doente o resto da vida!
- Diz que o avô da minha vizinha morreu doente assim! Diz que via coisas, que batia nos guris, chegou a sair pelado na rua...
- Que triste.
- Ah! Acho que nem sofre tanto assim não! Eles nem sabem o que estão fazendo!
- Talvez.
- Enfim, eu não iria e se eu fosse você, menos ainda!
- Por quê?
- Vai que os médicos resolvem te prender lá dentro também!
- Pára!
- Sabe que a diferença entre o médico e o paciente desses lugares é só quem é o dono da chave né?
- Porra, só vou entregar um documento e sair. Não tem erro!
- Boa sorte.
O tom fúnebre do "boa sorte" foi irritante demais! Fui embora calado. E agora? É... porque não tem jeito! As coisas que aquele infeliz falaram ficaram se rebatendo na minha cabeça! Ser perseguido. Apanhar. Ser preso.
Entrei no carro. Olhar estatelado para o volante. Nem saberia dizer quanto tempo fiquei ali perdido em pensamentos. Pensamentos perdidos.
Tentei ligar para a causadora de tudo isso. Aquela que pediu-me esse favor a quem gentilmente cedi. O que um homem não faz por uma merda de par de olhos azuis e uma voz carinhosa? Impressionante como os celulares ficam convenientemente desligados ou fora de área em momentos estratégicos!
Cheguei pelo outro lado da avenida. Tem um córrego entre as pistas. Uma lanchonete de frente ao hospital. Que lugar mórbido para se comer. Parei ali, pedi uma garrafa de cerveja. Parece que eu precisava tomar coragem. Doidos, loucos, preso, ficar preso. Violência. A garrafa secou em dois tempos. Secou. Precisava resolver logo esse assunto. Quanto mais demorava, mais dinheiro perdia. É isso! Paguei a conta, manobrei o carro e fui obstinado à guarita.
- Preciso entregar um documento. Posso entrar com o carro?
- Pode.
Guarda gordinho. Olhou-me de esgueio. Desconfiado. Abriu a cancela como se olhasse para o nada. Entrei, parei o carro em uma vaga perto da entrada. Silêncio.
Janelas um pouco opacas. Ninguém nelas. Grana verdejante, brilhante. Ninguém nela. Mesmo os passarinhos estavam muito calados. Uma porta grande, pesada, alta, toda decorada com vitrais, mas com o verniz e a pintura bastante gastos. Foi preciso algum esforço para abri-la. Um corredor, branco, corredores transversais, brancos. Ninguém ali. Onde estão todos?

(continua...)