12.10.11

Tinta e Sangue


Inusitadas coisas podem acontecer em um dia de testes. Ideias sendo postas à prova. Sim, talvez mais ideias do que conhecimentos. Propostas, projetos. Questões… É… nada fácil.
Aquele foi um dia destes. Um desafio. O dia começa ansioso, tenso. Ansiedade e tensão que provocam cegueira…
Os quatro começaram a arrumar confusões logo cedo. Mal o sol tinha nascido, um céu azul, a perfeita definição da cor azul celeste, o horizonte com seus amarelos de tom pastel, e ele já estava se arrumando, era necessário atravessar a cidade, para começo de conversa. Para sua surpresa nunca foi tão rápido, com cada segundo tão longo, fazer tal travessia.
Encontrou com as duas. Alguns biscoitos em agitação exponencial! Os preparativos ainda eram muitos e deveras trabalhosos! Saíram em busca da quarta. Algo estranho já se anunciava quando chegaram na casa desta, sempre tão pontual, dessa vez ainda atrapalhada. A de crespos cabelos ficou para ajudá-la, enquanto os outros dois prosseguiam com a missão.
Seriam necessários grandes tapumes de madeira que receberiam as impressões e as expressões de quatro vidas coletivas! Nesses ânimos exaltados os planos podem ser dimensionados de uma maneira disforme. Porque mesmo acharam que as tais madeiras caberiam no carro? Generosamente, sob um olhar de pânico, um carro novo, impecável, foi oferecido para carregar aquele material… o tempo passava…
Diante da delicada situação, o pintor se ofereceu. Seu Scort ano 80 e pedrinha daria conta do recado, estava acostumado a carregar coisas maiores e mais pesadas. O tempo passando… monta suporte… parafusa… o tempo passando… apóia, amarra… jornal… sacola… o tempo passando…
Enquanto isso, em mãos tensas, um copo estilhaçava em outro canto do bairro…
O tempo passando…
Cadê a chave? Serelepe esse saci, que some com as coisas em momentos de tal delicadeza!
Chave encontrada, partem já atrasados. Carro velho, rodando lentamente pelo asfalto, o tempo passando…
Enquanto isso… noutro canto do bairro, pernas bambeiam sobre o desnível territorial de calçada mal assentada! Chão! Tocos de árvores ressequidas rasgando a carne, afastando o quer que impedisse a rota do nariz ao chão!
E então o carro velho faz a curva e seu perspicaz e prestativo motorista imediatamente nota a senhora ensangüentada na esquina!
“Nossa! Ela está sangrando!”
“Ahn?”
“Quem?”
“Vamos socorrer!”
“Ahn?”
“Ok...?”
Ele rapidamente dá a volta no carro. Manobra ousada para quem vinha tão lentamente circulando… A senhora estava lá, na esquina, os dois mal notaram, desorientada…
“Senhora! Está tudo bem? Quer ir pro hospital?”
“É… quero… aquele lá… tenho convênio…”
O rapaz dá espaço a ela no banco da frente. O motorista faz mais uma volta radical e parte, na maior velocidade que o carro agüenta, para o tal hospital. Em meio a saltos do carro e estouros de escapamento, a sensação de que o veículo desmontaria na próxima esquina, o tempo voando, perguntas de “como a senhora está”, mãos dadas apertadas, confusas, sem saber o que pensar, mas pensando, em uníssono, “com a gente tem que ser na intensidade! Não acredito! Estamos fudidos!” As mãos não se descolaram mais…
A senhora foi deixada na entrada da emergência do Pronto Socorro, já sendo atendida por alguém da enfermagem.
Tapumes balançando… “esse escapamento vai cair?”
Tempo voando…
“Sabem, eu tenho diabetes, já até desmaiei algumas vezes… Não posso com sangue!”
E os passageiros pensam: “Ah! Meu Deus!”, “Só falta ele desmaiar agora”
“Até teve uma vez que me tiraram de cima de um barracão na corda, porque desmaiei lá em cima!”
“Porque eles está contando isso pra gente agora?”
“Ai! Ele Vai desmaiar!”
Mas não, finalmente a faculdade, sem desmaios. O tal pintor ainda se ofereceu a ajudar a carregar o material. Não foi necessário. A tensão fez seu trabalho e três franguinhos subiram com as duas pesadas peças.
Um soco caiu no estômago dos dois enquanto terminavam os preparativos. Não por qualquer moralismo babaca, mas pela sensação de que, enquanto cidadãos e trabalhadores de saúde, quase não cumpriram com seus arraigados compromissos éticos com a vida.
Enfim as tintas voaram, a conversa rolou, a tela foi limpa, a pressão retirada, os gases se espalharam nas telas, preenchendo a sala e invadindo as pessoas. Estava feito e tinha dado certo

18.9.11

Um momento


No barco, um churrasco. Ao menos um dia de descanso! Além de carne, banana. A embarcação vai adentrando na selva, que deixa um caminho cada vez mais estreito. Mas não, a margem não estava ali do lado! Não era possível ver margem, apenas selva.
Por fim um calmo braço de rio junto a uma comunidade ribeirinha. Um banho, uma tentativa de lavar aquela dor. Na comunidade um menino… fraco, magro, desnutrido… a comida não obedecia a sua boca rachada… ali talvez morresse de fome. Na cidade grande uma simples cirurgia talvez lhe garantisse uma vida longa e bela… Nem no descanso há descanso por aquelas terras, pelo menos não aos que lhe são estranhos e sensíveis.
O retorno é lento, contra o fluxo do rio… Finalmente caímos em um leito largo. A samaúma reina ao longe. Eis que vários botos surgem acompanhando nosso lento navegar, cristas que despontam em marolas. O sol vai se pondo, dourado, alaranjado, avermelhado, resfriando-se no rio à nossa frente. Mas às nossas costas, seguindo o movimento dos viajantes, uma grande lua cheia prateada emerge das águas marrons.
Não, não estávamos mais sob a luz crepuscular, tão pouco sob a luz do luar. Não, não eram botos. Não, não eram nossos corpos lavados pelo rio. Era outra coisa. Uma composição única. Uma pintura feita às pressas, dedilhada nos detalhes. Sentados no teto do barco, contemplando, sentíamos o acontecimento atravessar-nos… só o choro nos restava.

23.8.11

Ruínas?


Há tempos querendo escrever alguma coisa. Avançando na construção de estados mentais que propiciem tal atividade…
Aí vai um acontecimento que vem retumbando na cabeça…
Na verdade esse texto está pronto faz tempo...

Foram dias sombrios, dias de pouco sol. Nuvens, sombras, chuva. Vez por outra um frágil raio solar dava a esperança de um dia mais contente. De verdade, não havia a menor expectativa que isso acontecesse no espaço de alguns dias. Nada no ar dava a entender isso. Lembro bem de épocas em que passamos semanas sem uma trégua na garoa.
Mas o ar mudou, o vento mudou e, naquele dia, tão aguardado, tão esperado, tão preparado, as nuvens foram varridas. Um inusitado céu azul fez com que respirássemos fundo e pensássemos, cada qual em seu canto da cidade, hoje será um dia especial, um dia-acontecimento!
A despeito dos temores e na alegria das incertezas, foi!
As ruínas, naquela parte alta do bairro, contrastam fortemente com a tarde ensolarada. Paredes quase caídas, grandes muralhas que delimitam um espaço de sobrevivência. Sobre a vivência em um estigma, ou vários. Em preconceitos, em dores, em violências. Os aldeões daquele castelo, ali, estão dentro, apesar de estarem fora de tudo o mais que poderia acolher-los no mundo.
E eis que corpos alienígenas violam a segurança da aldeia. Tem um fora querendo entrar, querendo colocar para dentro. Olhar uma vida que pulsa onde quase todos supõem que ela não exista. Onde há pessoas assustadas, ressentidas, esperançosas, que amam e que odeiam.
O rapazote que recebe aos visitantes com a cara fechada. Não tem porque achar que se levará algo de bom deste inusitado encontro! Seu corpo reage. Violentamente trata os objetos, grosseiramente fala com seus colegas. Xingos, exclusão. Desconfiança.
“Sai daqui muleque burro!”
Mas o sentido daquele momento era outro. Mesmo a repreensão é um convite.
“Opa! Que letra é essa que você tá mandando aí?”
“O quê?”
“Isso aí! Xingando ele, mandando ele embora! Tem disso aqui não! Deixa ele entrar.” E os olhos diziam, “vem, entra você também!”
Desconfiança… atravessando… rodeando… Homens e mulheres, olham de longe uma roda que começa a se formar. Pessoas estranhas, com instrumentos. Delicada sonoridade quase estranha. A roda também é formada com desconfiança. Também corpos acostumados ao preconceito e à exclusão. Alguns sinais produzem algum comum e também o rumor dos guetos que se cruzam. Narizes feridos.
As tintas, as cores, atraem as crianças e logo os jovens. O agressivo rapaz pouco tem a fazer a não ser acompanhar o movimento. Quando chega então uma palavra amiga. Companheira. Vizinhos que até então pouco se olharam e agora se flertam em compaixão e admiração. Uma dupla que não se desfaz até o fim do dia, agressividade transtornada, transformada pelo carinho. Paixão pela vida transborda, a música invade o corpo e de repente o rapazote mostra como o surdo faz-lhe bem ao responder aos carinhos duros de suas mãos já calejadas. Por alguns minutos, capturado pela lógica que deixa a violência de fora, sua mestre, descontraidamente insiste, “olha aí! Você consegue! Manda bem pra caramba! Aparece lá pra tocar com a gente!” POW! Que bolha explode nesse segundo!
A moça declara-se no muro! Seu companheiro pinta um sonho e sobre ele retribui o carinho. Os filhos andam pela terra, comem a terra! Brincam com as tintas, redescobrem as cores, rostos manchados. Mesmo o carinho nessa família é duro. Mas é carinho. Um amor agressivo, a que um olhar pouco atento apreenderia apenas violência e tristeza. Mas há alegria! Vejam que há! O pai briga com a mulher porque o menino desperdiça a tinta e joga o lixo no terreno vizinho, em seguida confessa, não sei fazer diferente! A mãe responde carregando a pobre criança suja pelo braço, seu olhar diz amor, suas mãos provocam dor. Duro paradoxo.
Outro apenas observa o movimento, vê brotar, dentre os seus, alegria que outrora tivera em sua terra. Mal sabe dizer como, mas seus dedos retratam com precisão imagens imaginadas e vividas, de repente vívidas nos muros de uma ruína.
E eis que as tintas invadem o sorriso maroto do homem desprezado até dentre seus pares. Interagir com a pessoa homem é difícil, mas as tintas suavizaram-lhe a expressão e de repente lá está ele pendurado, marcando o mais alto lugar que pudera alcançar! Afirmava vida, afirmava “eu moro aqui”, para quem quer que quisesse enxergar!
Não… ali não havia teto, tão pouco janelas, as portas apenas separavam os quartos improvisados do pátio comunal. Pátio que agora sambava, recheado de outra estima! Alguns dizem que um incêndio levou tudo, outros maledizem ao proprietário, que fracassadamente teria retirado tudo para evitar “invasões”, outros que os próprios moradores teriam arrancado qualquer coisa que pudessem vender (e aí alguns diriam que para comprar comida e outros para comprar drogas). Restaram as paredes.
Pouco me importa os motivos. Sei que naquele dia-acontecimento furamos janelas invisíveis, feitas de aço! Não, não entramos pela porta. Esgueiramo-nos pela fresta aberta e a escancaramos… quiçá tal rombo feito jamais volte a se fechar. Pois ali, vida e dignidade estão explodindo e pedindo passagem.

4.7.11

Mangas, crepúsculo e cães

Este é um texto para ser lido com calma, em voz alta (foi escrito para assim ser "lido"), respeitando o tempo de cada pontuação e de cada parágrafo.



Eu aqui, sentado neste galho, fico a pensar em coisas da vida (sentado, pernas balançando, olhar perdido). Mas não me basta pensar, tenho que lhes falar, caros companheiros. Bem...
Vejam bem essa árvore! Anos atrás costumava vir aqui, não para pensar, mas apenas para chupar mangas! Eram horas, nem saberia dizer ao certo quantas... Nesses momentos de puro deleite um minuto vale por uma hora e passa mais rápido que um segundo!
É assim...
Mas bem. Naqueles tempos, costumavam vir alguns amigos comigo. Não vocês, nobres companheiros, que ainda não agraciavam minha existência àquela época!
E eu sempre sentava exatamente neste galho! Por dois motivos. Sempre me pareceu que ele tem o formato perfeito de minhas costas! Vejam (tenta deitar-se, meio mal acomodado)... É... bem... além disso, daqui a vista do pôr-do-sol me era privilegiada! Eternamente apaixonado pela luminosidade crepuscular, a luz em que as bordas das formas se contorcem, se deformam... o real imaginadamente real confundindo-se com o imaginado realmente imaginado.
Ahn!?
Quanta inspiração, né?
Talvez...
Talvez seja a melancolia das memórias. Tempos melhores? Não sei... tempos de fato diferentes, de fato mais alegres. Ou, sem dúvida, menos preocupados.
Dizem que cabelos brancos trazem responsabilidades... A merda com isso viu! Explicações tolas e inúteis.
As mangas. Onde estão? É mesmo, é julho, não é época. Agora só em Outubro...
Amigos! Eram as mangas que nos uniam então!
Claro!
Víamo-nos muito mais no verão do que no inverno e isso não era simplesmente medo do frio! Era compartilhar de um prazer pueril. As mangas que partilhávamos enquanto conversávamos sobre a vida!
Por um tempo era sobre os jogos da escola.
Ahá! Adorávamos falar daquele jogo em que o Daniel fechou o gol! Até pênalti ele defendeu! Enquanto isso Miguel e eu fazíamos miséria do adversário em uma tabelinha assassina! Tudo bem que não éramos os melhores boleiros... e isso nunca mais se repetiu... Mas ficamos com o vice-campeonato da escola!
Mas quando as meninas invadiram nosso cardápio, aí a coisa ficou complicada! Às vezes uns meninos os invadiam também!
Ei!
Não riam de mim, seus tolos! Paixão é coisa séria! Apesar... de que... também... não é. A boa é seriamente extrovertida. Ou não?
Sei que é arrebatadora! Enche. Pulsos batem mais rápidos. O coração vem à boca, o suor é gélido! É uma paixão! Paixão “adolescêntica”! Ah...
Mas, nem sempre é assim, é verdade. Em alguns momentos ela tem um outro furor, o carnal. O corpo inteiro pulsa! O desejo consome as vistas, consome a língua, entorpece o pensamento. E aí perdemo-nos nele! Até explodir!
Ah! A explosão!
E ninguém pode falar que se apaixonar é ruim! E ninguém, há de discordar que estas são boas descrições de paixão!
Também temos que ver bem, não há limite de quantidade! Onde nessas descrições está inserida quantidade? Lugar algum! Apaixono-me! Diariamente! Ininterruptamente! Voluptuosamente! Consumidoramente de mim mesmo! Apaixono-me por vocês meus caros amigos! Adolescentemente apaixonado! Carnalmente apaixonado! Doce e ingenuamente apaixonado...
É a pupila que dilata, vorazmente plena de si, enlouquecida em engolir o outro!
Veja... não há mal algum aí... Não sei o que escandaliza as pessoas! O que você diria se eu me confessasse apaixonado por ti?
Sei...
Não diria nada!
E nem é preciso que se diga!
Ambos temos a manga, é isso! Vamos prová-la ao máximo que for possível... simples e complexo assim!
Mas ainda assim, tem um limite! Porque a causa disso tudo, é o outro! E o que nos faz bem, queremos para nós! Capturar o pôr-do-sol em uma rede!
E o amor?
O amor...
O amor!
Pula da árvore, quase caindo, se abaixa, anda de um lado para o outro como se temesse estar sendo vigiado.
Xiiii! Isso não nos é permitido! (fala em sussurros)
Isso sim é realmente perigoso!
Imaginem! Se apaixonar pela alegria que a alegria do outro provoca em nós!
Afetar, afetando, afetado!
Sabe, é esse carinho... de quando eu coço a sua nuca!
É um pôr-se ao lado!
Uh! E com fogo também! Que destila nossas mentes! Embriaga os sentidos!
De toda forma leal, ao que somos, ao que se é, ao que construímos... e é isso...
Pura produção de vida!
Amar não é querer levar a luz crepuscular para si, mas sim esvanecer seus limites ao próprio crepúsculo!
E imaginem só! Não há de fato limite! Nem em intensidade, nem em quantidade! Ufff
Que perigo! Que força! Imagina só esse nosso mundo invadido por isso! ( fala em empolgação crescente) Imagine só tudo e todos cheios disso!? O que não se poderia!? Amar intensamente e cada vez mais! O que não se poderia!? (ápice, gritando e cansando)
Ei! Ei!
Seus merdas!
Não me olhem com esses sorrisos sarcásticos!
Não me olhem com esse ar de incredulidade!
É isso!? É assim então!?
Então me deixem delirando sozinho!
(sobe de volta na árvore, joga galhos)
Vamos! Deixem-me só com meu delírio!
Cães malditos...
(atira galhos e vira-se de costas).

31.3.11

A Notícia

(... continuando...) Voltando a escrever...


- É importante que eu diga a vocês! Se as coisas foram dessa forma, a culpa é minha!
O homem de calça social, camisa azul muito clara, já chamava atenção por seu porte e distinção. Seus traços duros mas bonitos. Ao dizer isso várias pessoas naquela ampla sala pararam de falar e olharam para ele. Não puderam conter a surpresa, a curiosidade e até a indignação! O rumor se espalhou, conversas viraram cochichos, todos prestavam atenção no que ele iria falar.
A viúva, uma mulher que nem chegava à casa dos 40, bela, de rosto delicado mas altivo. Sua tristeza não marcava sua beleza, mas transpirava pelos poros. Estava sentada, cansada, um peso inclinava seu tronco. Uma senhora de uns 70 anos estava sentada ao lado, simplesmente a abraçava. Outras, igualmente tristes e igualmente não abatidas estavam em cadeiras próximas. O homem, do lado contrário do salão.
Ao falar, sentou, exasperado!
Apoiou os cotovelos nos joelhos. Sua boca repuxou, sua culpa desmanchou seus olhos! Apoiou a face nas mãos. Alguns olhavam de soslaio, outros fitavam diretamente. Um a um, os que estavam por ali foram se sentando, deixando um livre caminho de olhar entre ele e a viúva.
- O que te atormenta meu filho? - perguntou a senhora.
- Ele ainda poderia estar vivo! Sem dúvida que sim! Perdoe-me por matá-lo!
- Mas quem é o senhor? Por que pensa esse despropósito? - surpreendida a viúva.
- Diego, o médico que deu a notícia...
- Meu rapaz... conte sua história, por que carrega uma culpa tão grande? Não tenho dúvidas que meu filho seguiu o caminho que achou mais importante, não deve haver culpa sua, mas se te conforta o espírito, conte-nos.
Todos sentaram para ouvi-lo.
- Eu não lembrava bem dele. Só lembrei de toda a história porque vocês me mandaram o recado para vir ao velório.
- Sim. Ele deixou uma lista de contatos. Para você também tinha deixado o número do prontuário.
- De fato eu sequer viria se não fosse isso. São dezenas de pacientes todos os dias. É impossível lembrar de todo mundo. Um ou outro deles falecer é algo até corriqueiro. A gente sempre lamenta não é, mas eu já não me abalava. Mas quando chegou o recado, o nome completo dele... veio-me todo aquele dia para a memória. Que dia terrível!
Sim! Primeiro chegou um a meu consultório que queria que eu prescrevesse o mesmo remédio que o vizinho tomava, achava que iria melhorar tanto quanto ele. Mas aquela medicação não lhe era indicada! Era um homem grosseiro, um rosto quadrado, nunca mais me esqueci! Cabelo pouco! Começou a esbravejar. Eu continuei a negar, ele levantou-se, bateu na mesa e disse que fizesse o que estava mandando porque era ele quem estava pagando! Fiquei transtornado e o expulsei do consultório.
Depois veio outro, uma mulher obesa. Já tinha perdido muito tempo com ela, mas dessa vez ela chegou quase morrendo! Paramos tudo para atendê-la. Foi uma confusão sem tamanho. Meu estresse estava no limite! Estava irritado! As pessoas não seguiam o que eu falava e depois vinham dar trabalho! Eu orientava, explicava, mas nada!
Então a enfermeira trouxe os papéis de seu filho. Ela dava uma olhada em tudo antes de me trazer, adiantava uma coisa ou outra. Chegou com aqueles lindos olhos azuis arregalados. Pôs os papéis na minha mesa e apontou o resultado do laudo. Câncer! No cérebro! Estava chocada, tão novo, tão bonito! E iria morrer!
Os lábios de Diego se contorciam. Ele os mordia, mas nesse momento não foi mais possível conter. As lágrimas vertiam, intensas, buscavam expiação por suas falhas.
- Eu fiquei louco com a intervenção dela! Lembro das minhas terríveis palavras como se fosse hoje! Bonito?, perguntei eu. Vi no laudo que de fato o prognóstico era péssimo! É mais um que morre! Os cabelos negros da Silvana caíram, percebi, em seus olhos o quanto ela me reprovou naquele momento! O quanto estava decepcionada! Não dei importância e ela saiu.
Quando ele entrou, fui rápido e taxativo. Você tem um câncer cerebral. "Mas..." É! É maligno! "Mas tem tratamento?" Tem sim, mas poucas chances de cura. "O que se pode fazer?" Sobretudo cirurgia, mas talvez não seja operável. "E qual o risco?" Você pode morrer durante a cirurgia, ou ter seqüelas importantes, motoras, cognitivas e perceptivas. Eu não lembro! Simplesmente não lembro do rosto dele, não lembro do corpo dele, não lembro da expressão dele! Não sei como ele recebeu a notícia. Nada! "Quanto tempo eu tenho?" Na melhor das hipóteses alguns meses, se tiver sucesso no tratamento talvez alguns poucos anos. Ele ficou calado, eu preenchi os papéis com os encaminhamentos todos que deveria ter. E ele saiu.
Depois que ele fechou a porta a Silvana entrou, deixou um papel na minha mesa e saiu. Era um pedido de demissão! Fiquei furioso! Aceitei na hora! Só a vi uma vez depois daquilo... e eu era apaixonado por ela! Só agora me dou conta!
E então ele chorou... as comportas foram abertas...
Levou um tempo até que alguém falasse algo novamente. E foi ele, ele continuou.
- Dois dias depois, quando eu estava saindo do consultório, ele apareceu. Lívido, mas com certo sorriso no rosto. "Obrigado doutor, você me libertou!" Apertou minha mão e foi embora! Tive a certeza que o tinha tratado mal, que tinha feito mal a ele, mas ainda assim ele me agradecia! Essa frase ecoa na minha cabeça até hoje!
- Vai ver foi por isso que meu filho o quis aqui hoje. Não por ele, mas por você. No cabeçalho da lista com os nomes das pessoas que estão aqui hoje estava escrito: "Pessoas que eu amo e que eu espero que se conheçam!" Você traz um pedaço da história dele... talvez ajude a entender tudo o que aconteceu. O falecimento dele está sendo muito doloroso, pois ele passou meses desaparecido e nós não entendemos o que estava acontecendo.
Dentre os cochichos era possível perceber que uns e outros amaldiçoavam o médico. Palavrões e xingamentos. O homem perdeu toda a pose, estava encolhido como criança assustada.
De traz de uma coluna de mármore encimada por um vaso com folhagens verdes saiu uma mulher de pele branca, cabelos muito escuros e olhos azuis luminosos. Movia-se silenciosa a tal ponto de passar despercebida por quase todos. Naquele momento a maioria estava sentada em um irregular círculo, à borda do qual ela se aproximou e falou em tom imperioso:
- Alguém aqui pode trazer Zeca de volta? Então não sejam tão apressador em condenar o Diego! - ela olhou para ele com doçura.
- Silvana?
- Eu o desculpo, mas não carregue culpa. Zeca fez uma escolha... consciente... ele foi embora comigo!
Houve um choque entre os presentes. Ninguém entendia nada! A viúva se contraía na cadeira, a mãe levantou e sentou de novo... Silvana sentou com os outros.
(continua...)

28.1.11

A história da moça de leve melodia

Bom.... a história da morte do Zeca não está saindo. Mas tem outras coisas por aí...


Vou falar para vocês. Luana não era uma moça qualquer. Foi uma das mais impressionantes pessoas que já conheci. Bondosamente atrapalhada. Quando tínhamos contato, sim, porque já faz muitos anos que não a vejo, vi-a em diversas situações deliciosamente inusitadas.
Certa vez estava lá ela brincando com as crianças. Sabe, ela é dessas pessoas que de quando em tanto vão a um creche ou a um asilo. Dizem que é levar alegria aos outros, mas ela reconhece que aquilo enchia a ela mesma de felicidade! Se fosse para sofrer, não iria. Dor a deixa mal humorada e agressiva! Ah! Sono também!
Então, aquele dia tinha uma certa magia no ar! O clima estava agrável, ensolarado, mas de temperatura amena. Ela foi àquela creche, ou seria orfanato? Não me lembro. Levar alguns brinquedos para as crianças. Chegou, estacionou o carro e os encontrou brincando com bola no terreno baldio ao lado da casa (era um sobrado, baixo mas comprido). Já se conheciam e se adoravam!!
-- Tia! Eba! - gritaram em coro! - vem jogar com a gente!
Imediatamente ela saltou do carro e foi atender ao chamado! Como não! Em segundos já estava fazendo embaixadinhas e lançando um drible ou outro que deixava alguns dos meninos boquiabertos.
Depois de algum tempo de jogo teve uma estranha sensação. Estranha enquanto sentido, mas não enquanto familiaridade. Era um certo frio na barriga, com uma dorzinha no ombro que lhe repuxava o braço direito. Sim! Tinha esquecido de algo! Mas o que seria? Chave de casa? No bolso da calça jeans azul. Chave do caro? Na bolsa! Bolsa... Ali no canto, atrás do gol de traves imaginárias marcadas por dois tijolos. Mas o carro... Cadê o carro? Não estava mais onde tinha estacionado! Olhou em volta! Todo mundo parou o que estava fazendo para entender o que estava acontecendo! Ela mostrava-se apreensiva, que raro! Corpo agitado, olhar apressado. Enfim o viu, tinha descido alguns metros e estava parado quase na esquina. Tinha esquecido o freio de mão abaixado!
Correu até o carro. Pernas finas, mas bonitas e elegantes, mesmo ao correr atrapalhada sobre o paralelepípedo. Ao chegar nele atrapalhou-se um pouco com a chave, que caiu. Luana apoiou-se no carro para pega-la e então ele começou a descer novamente! Mas dessa vez era uma ladeira íngreme. O veículo desceu e ganhou velocidade. Ela desceu correndo atrás do carro. E atrás dela, as crianças. Então, no fim da descida, ele arrebentou a traseira em um muro, derrubando-o inclusive!
E os brinquedos? Estavam todos no porta-malas ainda! Destruídos agora... alguns pedaços de plástico estavam até pelo chão em volta do lugar da colisão. As crianças ficaram injuriadas e voltaram todas para dentro. Fim de brincadeira.Entretanto, depois de uma ou duas horas ela apareceu na creche de novo. Chorou um pouco por seu querido carro, é verdade, mas já tinha acionado o seguro e o guincho já tinha levado o carro. O que poderia ser feito já o tinha sido. Então ela entrou na creche com uma grande sacola, as crianças a cercaram cheias de esperança e expectativa, mas quando abriu o saco, tudo o que viram foram pedaços de brinquedos.
Foi então que ela sacou de uma outra bolsa tubo de cola, tinta, pincel. Enquanto cantarolava, os pequenos a seguiam, hipnotisados, e começavam a criar novos brinquedos a partir daqueles destroços ou a enfeitar objetos. Várias camas ganharam adereços coloridos, algumas maçanetas foram cobertas de cores!
Cantarolando, pulando e dançando ela se foi. Deixando para trás pequenas pessoas prontas para jantar sonhos.
Mas como disse, esse foi apenas um caso exemplificar de uma situação deliciosamente inusitada. Sempre se produz coisas novas onde se enxerga potência! Devemos avançar pois um fato "periculoso" deve ser contado! E tudo o que disse antes só serviu para saberem um pouco mais sobre a Luana!

(continua...)

19.1.11

A vida insiste em perseverar

A vida insiste em perseverar. É isso. E nós insistimos em perseverar a vida daquilo com que nos identificamos. Explicação simples.
Estamos vendo, nesses tempos, as grandes tragédias ocorridas no Rio de Janeiro. Há que se escrever sobre isso e tirar alguns argumentos da boca de jornalistas tacanhos.
Tragédia Ecológica? Isso é um tragédia política e social, isso sim! Não há dúvidas que fúria das águas e da lama se abateria sobre a região não importa o que se fizesse. Não há dúvidas de que haveriam mortos (isso para contra argumentar aqueles que colocam toda a culpa nos governantes). Mas também é importante que se diga algumas coisas. Já se sabia que muitas das áreas ocupadas, urbanizadas, apresentavam risco aos moradores e freqüentadores. Isso era sabido, entretanto, as pressões políticas permitiam as construções. Qual vereador/prefeito não cede mediante a ameaça de retirada de recursos da cidade? (sem contar os esquemas mais corruptos em que a permissão para ficar/ocupar faz circular dinheiro entre os poderosos das cidades) O clientelismo e o populismo ofereciam esses terrenos à falta de moradia. Mas aí também tem sempre aquele que põe a culpa no pobre coitado que ocupou o barranco. Duvido que tenha ido para lá por alguma preferência pessoal, seria mais adequado dizer que "foi parar lá", na falta de outras opções para uma existência digna, sob um teto acolhedor.

Desses absurdos todos que temos escutado nos jornais para explicar, justificar, acusar, culpar etc teve algo que me mobilizou demais. Está relacionado com a reportagem colocada abaixo. Uma senhora se refugia da forte correnteza de lama no terraço de sua casa. Os tijolos ainda por cobrir dá a impressão que é um parte da casa onde ela ainda está investindo algo. Não temos como saber nada sobre o andar debaixo pois já está inteiramente coberto. A água continua subindo. Ela está só, com seus três cachoros, e começa e ver as paredes não terminadas daquele terraço ruirem. Nos prédios vizinhos as pessoas se mobilizem, de um que está próximo à casa lhe é atirada uma corda. Todos gritam orientações para ela. A senhora amarra a corda entorno da cintura. Tenta amarrar o cachorro menor junto, mas não consegue. Então ela o põe de braço do baixo e pula na direção do prédio tendo uma grande tormenta de água, coisas carregadas por esta e lama no meio do caminho. A correnteza era exatamente a de um rio caudaloso descendo uma serra íngreme, nada menos do que isso. Uma cachoeira horizontal. Quem quer que já tenha passado por águas turbulentas assim entende do que estou falando (ainda que ver o video torne esse imaginado algo bastante claro). A câmera mostra os pretensos salvadores, dois homens no terraço do prédio, talvez uns três andares acima da altura em que a mulher se encontra.
Ela salta! O que garantia que eles iriam agüentar? Nada! Ela é grande! A morte está a seu encalço e a única esperança era pular para a possível morte e confiar. Ela afunda na tormenta, a correnteza a leva um pouco para o lado e eles conseguem erguê-la para fora. O cãozinho foi levado, as mãos dela estão vazias. Ela é pesada, o rio é forte, mesmo assim os dois conseguem puxa-la. Não há nada no video que nos faça acreditar que os dois salvadores sejam maiores do que a média dos homens, nem mais fortes, mesmo assim eles a erguem em segurança (não sem grande esforço! Os mais atentos podem ouvi-los gritando, antes de cada puxão, "um, dois, três"). Ela é salva.
Bom, aí o repórter diz que a mulher se salvou por sorte! Sorte do que? De haver uma corda? De ter um prédio do lado? Pois eu digo que a vida insiste em perseverar e nisso explode a potência de cada um em pura coragem e solidariedade! Sorte? Famoso, "eu truco!"
Foi sorte o pai ter encontrado uma fresta na lama onde pudesse proteger seu bebê? Digo que foi coragem ter resistido e ter hidratado o filho com a própria saliva e tranquilizado-o enquanto ele próprio estava ferido e devia amedrontado.
A lógica seria morrer. O corpo e a vida são frágeis diante das intempéries todas que os cercam. Muito frágeis! Mas a vida, em tendo uma chance, menor que seja, insiste em perseverar!


1.1.11

Férias

Agora é este autor que vos fala em si!
Não é um conto, uma fábula ou qualquer coisa assim.
Mas conto-lhes que já faz uns 5 anos que não tiro umas boas férias. As que formalmente tirei foram usadas para propósitos, digamos, que não meus. Não eram para descanso, para reflexão, para passeios ou qualquer coisa assim que as pessoas costumam fazer nesse período.
Mas... por incrível que pareça! E por uma conjunção de fatores até mesmo fora de minha alçada 2011 começa assim! Férias de trabalho em janeiro!
A primeira semana será dedicada ao tão sonhado descanso! Uma viagenzinha mochilada! Daquelas de baixo custo!
O resto do mês será da luta para que o mestrado entre em trabalho de parto!!
Dessa forma o próximo post e, talvez, a continuação do post anterior, venha apenas lá pela metade do mês.
Descansam, divirtam-se, sejam felizes.